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04/08/2018

In(con)victus

In(con)victus
Barata Cichetto

I'm the master of my fate, the captain of my soul! -  William Ernest Henley

Minh'alma é fragata pelos mares perdida
A deriva, feito mão por pedido estendida.
O meu destino perde a esperança do porvir
E deriva do choro de criança que há de vir.

Às sereias jogam traidores, poetas ao fundo
Nau dos piratas caolhos ao redor do mundo
E se não for por seu meu aquilo que mereço
Prefiro a sepultura sem lápide nem endereço.

Se lamento por ser indigno dos portos além
Nunca nesses lamentos ouso acusar alguém,
Pois se há na terra quem espere pelo meu fim
Esse alguém que espere muitos antes de mim.

Ah, e a minha luta, quanto luto foi meu custo
Que deveras mereço uma estátua ou um busto
E se minhas lágrimas ao porão do barco imunda
Deixo que ratos roam até as carnes da tua bunda.

19/06/2018

01/08/2018

Em Casa de Barata Não Entra Lobisomem

Em Casa de Barata Não Entra Lobisomem
Barata Cichetto


Aquele a quem (nunca) chamaram de pai, nem de filho, não mora mais ali. Nem aqui. Mora acolá, na Morada do Sol.  Não mora mais na arte que construiu, não mora na escultura; não mora mais onde suas mãos calejadas e sangrentas construíram. Não mora mais no seu sonho, não mora mais lá, no pesadelo. O poeta que nunca leram não escreve mais lá, apenas algumas manchas do seu sangue estão esparramadas pelas paredes e pingados pelo chão. Misturadas às lágrimas. Deixei cada pedaço de madeira, cada prego e cada parafuso para trás. Fui escorraçado, pisoteado e humilhado - não pela primeira vez, mas juro que pela última - Ali podem encontrar meu primeiro quadro pintado, na parede. Ali podem encontrar quilos e quilos de papel e papelão, besteiras de decoração, pedaços de coração, e também alguns nacos da minha carne e dos meus músculos que rasgaram.  Não, o poeta que nunca leram, o poeta que nunca entenderam, não morreu, nem foi ao Inferno. Nem voltou. E agora sabe que o Inferno tem muitas paredes, e o Demônio caras diferentes. E mil dentes. Há o Inferno e existem os outros. São coisas distintas. Doravante, seguirei. Irei. Serei. Sempre sozinho como sempre fui, de fato. Mesmo que não esteja só. Trago comigo minhas filhas felinas, aquelas que sempre entenderam o que é liberdade, que sempre souberam o que é lealdade, que sempre souberam me olhar com carinho e respeito. Que sabem reconhecer cada gesto que faço. Minhas gatas não são comunistas, entendem de afeto, de reconhecimento e de merecimento. Aquele cantor que nunca ninguém escutou, agora calado, não lhes cantará uma canção. Ele já não tem coração. Nem adoração. Desfigurado, o poeta ludibria a própria morte. Esguicha sangue do corte. E resvala na beira do precipício. Não há caminho por onde não se possa andar. E aquele homem, que nunca foi distinto, que nunca usou um distintivo de autoridade, já não mora mais, não namora mais. Não chora mais. Morar e chorar rima com sonhar. E aquele que pediu socorro se cala. Diante de seu silêncio. A nova geração herdará a merda. Tudo se herda! E sem perda não há ganho. Dividir para conquistar é a tática marxista. De Karl e de Zuckemberg. Não quero preces. Nem foices. Nem martelos. Quero apenas o que é meu. Foi assim que ensinei. Foi assim que vivi. Foi assim que aprendi. E surpreendi. A mim mesmo por não saber ganhar. Perdi sem ser perdedor. Meus heróis estão na Academia. Brasileira de Letras. Na Feira de Paraty. Ou são membros da quadrilha. E eu, numa ilha. Náufrago que queima agora as ultimas caravelas.Não tem retorno. Nem rendição. Apenas a conquista. Ou a morte. Com sorte um império. É sério. Não sei mais rir. Nem chorar. Não lembro mais como se faz. Só quero que esqueçam. Deixem de procurar. Rasguem a certidão. Foi morrendo que aprendi a ser homem. Aquele a quem nunca escutaram, de quem reclamaram falar demais agora se cala. E Tudo o que foi criado foi destruído; toda a fidelidade traída; todo o trabalho prostituído. Dos envelopes pelas ruas, projetos de brinquedos, à poesia e pintura. Todos os meus heróis morreram ou foram para a Academia. O resto também me ignora como eu ignoro a eles. Quem precisa de construtores? De sonhos ninguém. Quem precisa de poetas? De poesia ninguém. Quem precisa de mim? Eu preciso. E dedicarei minha vitória e minha derrota àqueles que nunca precisaram de mim. Arrombaram a porta dos meus sonhos. Não precisava, eu lhes daria a chave. Um rei continua sendo rei sem um palácio. Lembrem-se disso quando chorarem. Saudades é coisa de capitalista; comunistas não sentem saudades. Só maldades. Mas eu tenho amigos comunistas que sentem saudades de mim. E eu deles. Invadam a minha construção. É sua herança e minha satisfação. Construí sobre a Terra. E a Terra não tem dono. Proprietário é o que constrói. E eu construí. Exerçam seu direito de herança, e façam o que eu não fiz: derrubem as paredes, taquem fogo na madeira. Incendeiem tudo. Eu lhes dou permissão para invadir. Pilhar. Destruir. Restaurem a dignidade. E ao restarem farpas, matem os lobos. Não uivem na esquina em vão. Entre o vão e a plataforma há um anão. De olhos claros e cabelos brancos. Anão moral. Impotente e preguiçoso. Coloquem um velho bêbado na cadeira de rodas e o empurrem ladeira abaixo. Há tipos e tipos de velhos. Inclusive velhos porcos, daqueles que acham que são humanos. São esses os piores. Não poupem suas balas. Prefiram as de hortelã. Atirem para matar. De rir. Ademais, não lhes dou o endereço, nem o código de endereçamento postal, nem o de barras. De chocolate. Visitem a mansão dos mortos, enquanto queimo nos portos as caravelas. As caravanas que passam atropelam os lobos. Pedras que rolam viram poeira. E eu continuo sem beira, nem beira. À beira. Do cais. Cães que ladram. Cães de guerra. Selvagens da Terra. Acordem, crianças, que não há mais onde pisar. A terra não aguenta mais seu peso. Deixem que afundem. Em Agosto. Cuspiram em meu rosto. E a contragosto fiquei calado. E em Setembro, se ainda lembro, serei falado. Até Outubro serei alado. E depois jamais será o antes. Nunca mais. Deixem seus recados após o sinal. Tu-tu-tu-tu...
28/07/2018

17/07/2018

Esgoto

Esgoto
Barata Cichetto

Aquele que nunca é convidado a uma festa, nunca pode ser acusado de chegar atrasado. Já em um velório, não é possível culpar o morto. A festa acabou. O velório é na porta ao lado. Deixem suas mensagens no livro preto de visitas. E mantenham suas consciências tranquilas. Não me convidaram para a festa que deram. Não foram na festa que eu dei. Não os convido para o velório, então. Fico sozinho. Com os vermes e as velas. Tirem as rosas do meu caixão. Detesto todo tipo de rosas. Incluindo adálias e margaridas. E outras flores fedorentas, com cheiro de morte e solidão. Deixem os vermes. São meus convidados. Estão dentro de mim há tempos. Convidem as chamas. As damas também, menos as das camélias, que essas são flores também. Roubaram tudo o que eu tinha, roubaram até o que eu não tinha. Queriam tudo. Ficaram sem nada. Por que a única coisa que eu tinha era a mim. E me roubaram de mim. Me deixaram sem eu. Agora sou apenas um deus, um anjo do inferno. Meu caralho é minha lança e enfio no seu rabo. Não geme. Não grita. Cala a boca e me esquece. Não desce do ônibus. Continua seu caminho. Não olha para trás. Não me ligue. Não ligo. Não digo. Não diga. Não diga alô. Nem adeus. Não digo adeus. Não estou morto. Não sou morto. Mortos são todos que roubam de mim meu direito de ser. O que sou. Apenas o esquecimento será sua herança. Não busque na lembrança minha imagem. Que por semelhança é torta. Não ore. Não chore. Não adore. Sua sorte não é sua. É emprestada. Devolva. E pague os juros. Sua casa não é sua. Sua bunda não é sua. Devolva as calcinhas que roubou do varal da vizinha. Devolva o que roubou. Não a mim. A mim não precisa. Nada do que me roubou tinha valor. Apenas preço. Empreste. Jogue. Queime. Engula. Morra. Escorra. Essas sentenças são tão extensas, e tão pouco extensas, mas foram feitas pelas minhas crenças. Se crê há. Se há crê. E se nada há, nada há de se perder. Nunca me perdi. Nunca perdi nada que não pudesse encontrar. Não me roubaste nada que eu não pudesse lhe dar. Não deixo lágrimas sobre a terra. Deixo apenas um nada enorme que jamais poderá preencher o buraco que há no seu caráter. Não deixo nenhuma culpa atrás da porta. Pode arrombar a minha casa. Pilhe o suor esparramado no chão, mas não se esqueça da maldição. Que nem todo o sangue podre poderá apagar. Não revise meu texto. Enfie no rabo seu pretexto. Foda-se o contexto. O sol é minha morada. Lá estou indo. Fique na tua escuridão.

17/07/2018

15/07/2018

Non Dvcor Dvco

Non Dvcor Dvco
Barata Cichetto


Eu nasci há sessenta anos, em São Paulo, uma cidade que na época ainda não era um gigante engolido pela ganância das oportunidades, uma espécie de New York de terceiro mundo. 
A cidade de São Paulo, nos anos cinquenta, que tinha completado quatrocentos anos de existência, ainda mantinha a predominância de imigrantes europeus, particularmente italianos, espanhóis e portugueses, mas começara a ser desenhada como uma cidade multicultural, que se tornou logo depois.
Filho e neto de paulistas e paulistanos, todos descendentes de italianos, cresci vendo essa cidade se tornar de poética á imunda.  A migração e imigração descontrolada fez a cidade perder seu charme, sua ousadia e sua poesia. Tornou-se uma cidade suja, emporcalhada e, para mim, perdeu tudo o que eu considerada valoroso.
Recentemente tomei um choque, com um fato que me aconteceu, ao entrar numa padaria para tomar um café: o balconista, com um sotaque nordestino carregado, me perguntou de onde era o meu sotaque. Só respondi que era daqui mesmo, mas me senti sinceramente desconfortável. E isso me fez pensar, analisando também outras coisas, que minha "mãe" já não me queria nos seus braços.
Observo há tempos, que todos os valores que sempre foram caros a paulistas e paulistanos, se perderam no meio de tanta cultura "externa". O próprio café, que sempre foi um orgulho paulista, que era servido forte e meio amargo, em copos de dose, passou a ser servido de acordo com o gosto nordestino, fraco, doce e em copo americano cheio, coisa que é absolutamente horrorosa.
Sob muitos pontos de vista, tendo pensamentos e atos progressistas, mas em outros, me reconheço como conservador, e creio que esse é meu ponto de equilíbrio. Há coisas que precisamos conservar, sim. Determinados valores que nos ligam às raízes, que são parte de nossa construção como ser humano. 
A decorrência disso, é que passei a me isolar dentro de casa. Sair, pegar ônibus e metrô virou uma tortura. A sujeira e a violência impregnada nas pessoas, que reagem sobre seus direitos, mas esquecem de reagir com a mesma força com seus deveres não é uma prerrogativa de São Paulo, mas dada a sua cultura plural demais, toma ares de quase esquizofrenia. Se alguém, como já aconteceu comigo, estiver parado do lado esquerdo numa escada rolante do metrô, é ofendido e maltratado, como se estivesse cometendo um crime contra os direitos humanos. Numa cidade como essa, todo mundo berra por seus direitos, desde o seu lado na escada, de pichar propriedade alheia, cagar na rua e ser, especialmente, violento.
O fato é que cansei da "mãe", cansei da "puta", cansei de ser maltratado dentro da minha própria casa. Quero de volta minhas raízes, quero de volta a minha paz. Coisas que sei que neste lugar nunca mais encontrarei. Alguns caminhos estão abertos, algumas portas se abrem. Não sei ainda onde essas portas e caminhos me levarão, mas uma coisa é certa: deixo essa terra. Non dvcor dvco. Longe daqui.

09/07/2018

13/07/2018

Tercetos Tortos de Primogênitos Mortos

Tercetos Tortos de Primogênitos Mortos
Barata Cichetto

1 -
Eu, que fui abortado antes mesmo da concepção
Neto de José o empreiteiro e de dona Conceição
Um feto eu não seria, mas apenas outra decepção.

Eu, que sofri dores do próprio parto, a dura rendição
Expulso dos seios, das bucetas e casas de prostituição
Sabiam que eu era o espelho de sua própria maldição.

Eu, que fui posto na rua sem nenhuma outra opção
Negado por seis vezes e enforcado sem condenação
Mas estar vivo era minha única forma de sonegação.

2 -
Eu, que fui maior antes de crescer, subi antes de descer
Jogado na rua vencia, mas sabia que não podia vencer
Pois jamais me permitiriam ter o que fazia por merecer.

Eu, que obedecia a tudo o que era proibido de obedecer
E desobedecia à lei dos belos e dos que queriam aparecer
E à margem do mundo, restava-me apenas o desaparecer.

Eu, filho de quem não conhecia, não podia me esquecer
Sabia de muito e nada mais, então, eu poderia conhecer
E assim fui escondido, antes do primeiro dia amanhecer.

3 -
Eu, que diante do tributal fui condenado sem direito
Agora grito que fazer o certo sempre foi o meu defeito
Não aquilo que eu queria, mas que tinha que ser feito.

Eu, que fui jogado às moscas por um inseto imperfeito
Busquei nas lendas meu futuro e no pretérito o perfeito
Sem saber que era preciso antes eleger um bom prefeito.

Eu, que escondido nas entrelinhas de um oculto sujeito
Tracei em linhas tortas o que foi chamado de preconceito
E eu nem sabia o que era a dor de andar nu e insatisfeito.

4 -
Eu, que das trevas fiz a própria luz, e do medo a coragem
Fui despachado na estação sem dinheiro, e nem bagagem
E ainda disseram que minha dor era uma imensa bobagem.

Eu, que dei de comer a porcos, e alimentado com lavagem
Sabia que ninguém é feito por semelhança a uma imagem
E que ninguém é passageiro, mas condutor de sua viagem.

Eu, que do trabalho fiz conduta, condenado por vadiagem
E enquanto minhas cicatrizes cresciam feito tosca tatuagem
O escolhido sorria sem que percebessem sua vagabundagem.

5 -
Eu, que não sou o bem, mas muito menos o mal encarnado
Tenho a energia do vento e a força herdada de um tornado
Encontrei a muita gente perdida, antes de ser abandonado.

Eu, que poderia ser um rei, fui deposto antes de entronado
Usurparam-me a coroa, fazendo-me de demônio condenado
E agora na partilha das almas, resto apenas como o finado.

Eu, que pela natureza pura sou impuro, sofro indignado
Por negação dura, vago pelas ruas por loucura dominado
E ainda cometo minha poesia morrendo de dor alucinado.


6 -
Eu, que sou apenas um predicado sem sujeito
Simples, composto e oculto, é do que sou feito
E nenhuma sentença determina meu conceito.

Eu, que não sou bala, confete, e nem confeito
Um pouco amargo, nada do que seja perfeito
Renego seu afago, nada que possa ser desfeito.

Eu, pretérito preterido do indicativo imperfeito
No travesseiro duro do passado busco o desfeito
Busco nas entrelinhas das frases ser do meu jeito.

7 -
Eu, que fui o meu próprio pai, a imagem e semelhança
Não pareço com ninguém qual ainda tenha lembrança
E sequer tenho olhos claros para ostentar como herança.

Eu, que a doença diverte feito um brinquedo desde criança
Fiz da morte a crença e a porcos dei de comer a esperança
Pisei nas sandálias de Deus e nunca dancei a mesma dança.

Eu, que tive o coração arrancado, empacoto minha mudança
E sem eira e nem beira, apenas o desespero tendo por fiança
Termino do jeito que comecei, como o alvo de uma matança.

8 -
Eu, que nunca fui enxergado feito ao glaucomatoso
E às cegas, sem ser pederasta, fui ser macho culposo
Soube pelas entrelinhas fofoqueiras que era famoso.

Eu, que teria desistido pela doença do mentiroso
Enxerguei às expensas da crente o ódio insidioso
Mas agora sinto que chegou a hora de ser o idoso.

Eu, que com a idade sinto um tumor gangrenoso
Abandono a cidade com o humor do monstruoso
Buscando fugir ao rumor e do meu circulo vicioso.

9 -
Eu, que uma peste fui feito em forma de gente
Soterro meu coração nas sepultura da serpente
E na morte encontro a sanidade de um doente.

Eu, parte homem, parte espírito de um indigente
Nunca encontrei abrigado nas asas de um parente
E agora, encontro na morada o sol independente.

Eu, que sempre fui eu, apenas outro ser diferente
Deixo para trás toda a injustiça, parca e demente
E traço meu destino, seguindo sempre em frente.

12/07/2018

25/06/2018

Viver é Fatal!

Viver é Fatal!
Barata Cichetto

Eu queria acordar pensando que foi um sonho. Que durou sessenta anos. Queria olhar no espelho e enxergar um rosto de criança, escovando os dentes de leite, depois colocar as calças curtas, a camisa branca, os suspensórios de couro, e por fim a gravatinha azul, presa com elástico e com apenas uma lista indicando primeiro ano escolar.
Queria sair pelas ruas correndo e comendo tardiamente o lanche não devorado no recreio, e até tomar um homérico tombo numa rua de terra do bairro quase sem casas. Queria ficar satisfeito em saber que tudo aquilo que vivi nos últimos sessenta anos tenha sido apenas um sonho, e que eu ainda tenha esses mesmos para construir uma vida.
Queria andar pelas ruas do centro da cidade, com pressa para entregar pacotes e envelopes de uma loja de peças da Rua Florêncio de Abreu, depois andar pela Paulista recém-ampliada, soltar camisinhas cheias de ar, feito bexigas, pelas janelas do prédio, sobre o telhado de dois casarões dos tempos dos barões do café.
Queria pensar que tudo foi um sonho, que todas essas coisas que eu vivi, eu ainda não vivi. Queria acreditar que ainda tenho que viver tudo isso, ainda. E o que é melhor, viver tudo isso de forma melhor e diferente. Queria pensar que acordei hoje de um sonho de sessenta anos. E viver tudo de novo. Ainda ter tempo, ainda ter muito tempo. 
Acontece que a vida não é sonho, nem bem, nem ruim. Não é sonho. A vida é real, tão real quanto podemos entender e sentir por realidade. A vida é fatal.
E na fatalidade do viver, corro ao espelho e velho um rosto enrugado debaixo de cabelos e barba brancos, não há mais dentes de leite, apenas dentadura. E não há mais uniformes escolares, nem caminhos de office-boy. Há o cansaço, há a amargura de quem sempre procurou o ser, não o ter. Há a textura na pele como marcas e provas de que nada foi um sonho. Tudo é real. Tão real quanto se possa sonhar.
25/06/1958