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29/11/2012

Sobre Amigos e Calcinhas

Sobre Amigos e Calcinhas
Luiz Carlos Barata Cichetto

Texto escrito como trabalho prático na Oficina de Literatura: Vida e Ficção, Coordenação: Deborah Goldemberg, Oficina da Palavra Casa Mário de Andrade, 22 a 30/11/2012. O texto abaixo é o apresentado na Oficina e na sequencia as alterações propostas.


(Mulher Sentada com a Perna Esquerda Dobrada - (Edith Schiele), 1917 - Praga, Národní Galerie)
Meu Amigo Andrade

Andrade é meu amigo há uns 30 anos e um profundo conhecedor de literatura. Mas não como acadêmico e sim como voraz leitor, desde menino, de qualquer coisa que se aproxime de suas mãos e olhos. Na adolescência, quando o conheci, era daqueles que passavam noites e noites em claro lendo sobre os mais diversos assuntos. Da poesia clássica à medicina nuclear, qualquer coisa interessava ao Andrade. E embora sua aparência física ou sua forma de se vestir e portar não fossem fora do convencional, era tido como “o cara estranho” da turma, sempre com livros debaixo do braço e a conversa girando em torno de grandes autores da literatura. Enfim, meu amigo Andrade era um sujeito muito esquisito, isso era mesmo.

No último sábado, um calor desgraçado desde o amanhecer, e eu ainda de cuecas tomava meu café, quando o telefone tocou. Era o Andrade, convidando para uma "conversa molhada", como sempre se referia às nossas conversas regadas a cerveja num "pé-sujo" do bairro.  Em menos de duas horas estávamos sentados em uma das mesas do boteco que há muitos anos era nosso ponto de encontro predileto, tomando nossas cervejas em "copos de botequeiro" como chamamos aqueles tradicionais copos conhecidos como "americano" e que nos bares servem tanto a cerveja da noite, quanto ao pingado da manhã. 

Andrade bebericava sua cerveja sem gelo e folheava displicentemente um livro, quando cheguei, também com um livro debaixo do braço. Era uma espécie de código secreto, de senha, entre nós, desde quando nos conhecemos, essa coisa de aparecermos em nossos encontros sempre com livros, que no fim eram trocados e nunca mais destrocados. A minha senha daquele dia era: "Olga", de Fernando Morais, a do Andrade "Eu e Outros Poemas", de Augusto dos Anjos, que, aliás, tinha sido minha senha há uns dez anos atrás. Mais que esquisito esse meu amigo Andrade...

Nossas conversas sempre se iniciavam sobre os livros que usávamos como "senha" no encontro, mas naquele dia foi um pouco diferente, pois Andrade conhecia bastante a vida de Olga Benario, esposa de Luiz Carlos Prestes e que fora morta num campo de concentração durante a segunda guerra mundial, e eu sabia quase que de cor todos os poemas do único livro editado pelo poeta paraibano. Portanto, o prólogo daquele nosso encontro foi um tanto mais curto. E assim passamos muito mais rapidamente da literatura à vida real, segunda parte dos nossos encontros, quando falamos sobre família, mulheres, filhos, essas coisas corriqueiras, mas essenciais. Afinal, como dizia sempre o Andrade parafraseando Oscar Wilde: "A literatura antecipa sempre a vida. Não a copia, amolda-a aos seus desígnios." 

“Ô, cidadão”, gesticulou Andrade ao dono do bar “manda outras duas, a minha sem gelo!”. Mas enquanto o homem abria as cervejas, algo mudaria o roteiro de nosso encontro. Uma mulher belíssima, usando uma saia minúscula e possuidora de um belo e longo par de pernas adentrou ao bar e sentou-se na mesa em frente à nossa. Andrade deixou cair os óculos sobre “Olga”, o homem do bar a cerveja sobre a mesa e eu, bem, eu deixei cair o queixo sobre Augusto dos Anjos. Ela, é claro, percebeu, mas disfarçou pedindo “uma água com gás, por favor!” Amaldiçoei minha cerveja e desejei que Andrade saísse dali correndo, levando a história da revolucionária judia para longe dali. Muito esquisito, eu.

Mas Andrade não saiu. E em sua esquisitice, naquele momento travestida de pura sacanagem, começou a falar alto sobre as aventuras e sofrimentos da revolucionária alemã, grifando verbalmente a palavra “mulher” constantemente. O sacana do Andrade queria mostrar o quanto ele tinha apreço e respeito por mulheres fortes e corajosas. Queria impressionar a dama sentada a nossa frente. “Entenda, meu amigo, que essa MULHER era de uma fortaleza incrível. Desde menina já se engajou nas fileiras anarquistas e comunistas na Alemanha. MULHER de fibra!”. Entretanto, a tática do Andrade parecia não surtir nenhum efeito, pois ela não tirava os olhos do celular, digitando uma mensagem, bebericando sua água com gás e cruzando e descruzando aquelas pernas de um lado para o outro, num balé digno das mais dedicadas dançarinas do Moulin Rouge. 

“Ela foi uma das mulheres mais fortes da história da humanidade”, quase berrava Andrade “Uma vadia!”, sussurrei. “A Olga era uma vadia? Tá louco?”. “Estou falando da dona aí em frente, seu babaca!”. “Ah, sim... Mas então... O desgraçado do Getulio mandou-a para as mãos dos nazistas, grávida..”. Hã, hã... É verde claro!”, disse eu. “O quê, cacete, o que é verde claro?”. “A calcinha dela. A calcinha dela é verde claro!”. “Da Olga?”. “Claro que não, estou falando da dona ai em frente... Ah, deixa de ser chato, Andrade!”. (Silêncio) “Não, não é! É azul!”. “Hein? O que é azul?”.“A calcinha, a calcinha é azul...” Andrade deu uma gargalhada escandalosa que fez com que todos dentro do bar se virassem em nossa direção. Ou melhor, quase todos, pois a mulher, alvo da nossa atenção, continuava impassível, digitando no celular e cruzando e descruzando as longas pernas numa rapidez impressionante.

Quase saímos na porrada para definir a cor da calcinha da moça. E concluímos que era um tom entre o azul e o verde. “Azul esverdeado”, como achei de definir, ou “verde azulado”, como Andrade ainda queria. E quando tínhamos chegado a um consenso sobre a cor da calcinha, o balé de pernas simplesmente cessou. A “bailarina” juntando os joelhos fechou o celular, pediu a conta e saiu pela porta, atravessando a rua a passos rápidos e entrando num carro estacionado, que rapidamente desapareceu na primeira esquina, enquanto eu e Andrade ficamos totalmente em silêncio, como que nos culpando mutuamente.

Olhamos cada um aos nossos livros e em silêncio destrocamos os títulos, como nunca tínhamos feito antes. E nos despedimos sem uma palavra sequer, indo cada um para um lado da rua, com seu livro debaixo do braço. A vida, parece, tinha entrado em um carro e desaparecido minutos antes. Mas ainda tínhamos aos nossos livros e possivelmente em algum outro sábado de sol estaríamos de volta ali, naquele boteco sujo, onde a vida parecia existir. Esquisitos nós, eu e o Andrade!

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Após a apresentação e leitura na Oficina e baseado em comentários, tanto dos participantes, quando da Coordenadora, onde a critica maior foi sobre o fato de o texto não ter um gênero definido, oscilando entre crônica e conto, foi solicitado algumas mudanças. O texto ficou assim, sendo que inclusive mudei o titulo.

Sobre Amigos e Calcinhas

No último sábado, um calor desgraçado desde o amanhecer, e eu ainda de cuecas tomava meu café, quando o telefone tocou. Era o Andrade, meu melhor amigo há quase 30 anos, convidando para uma "conversa molhada", como sempre se referia aos nossos papos regados a cerveja num "pé-sujo" do bairro. Andrade bebericava sua cerveja sem gelo e folheava displicentemente um livro quando cheguei, também com um livro debaixo do braço. Era uma espécie de código secreto, de senha, entre nós, desde quando nos conhecemos, essa coisa de aparecermos em nossos encontros sempre com livros, que no fim eram trocados e nunca mais destrocados. A minha senha daquele dia era: "Olga", de Fernando Morais, a do Andrade "Eu e Outros Poemas", de Augusto dos Anjos, que, por esquecimento e desleixo dele, já tinha sido minha senha há uns três anos atrás.

Nossas conversas sempre se iniciavam sobre os livros que usávamos como senha do encontro, mas naquele dia foi um pouco diferente, pois Andrade conhecia bastante a vida de Olga Benario, esposa de Luiz Carlos Prestes, morta num campo de concentração durante a segunda guerra mundial, e eu sabia quase que de cor todos os poemas do único livro editado pelo poeta paraibano. Portanto, o prólogo daquele nosso encontro foi um tanto mais curto. E assim passamos muito mais rapidamente da literatura à vida real, segunda parte da nossa conversa, quando sempre falávamos sobre família, mulheres, filhos, essas coisas corriqueiras, mas essenciais. Afinal, como dizia sempre o Andrade parafraseando Oscar Wilde: "A literatura antecipa sempre a vida. Não a copia, amolda-a aos seus desígnios." 

“Ô, cidadão”, gesticulou Andrade ao dono do bar “manda outras duas, a minha sem gelo!”. Mas enquanto o homem abria as cervejas, algo mudaria o roteiro de nosso encontro. Uma mulher belíssima, usando uma saia minúscula e possuidora de um belo e longo par de pernas adentrou ao bar e sentou-se na mesa em frente à nossa. Andrade deixou cair os óculos sobre “Olga”, o homem do bar a cerveja sobre a mesa e eu, bem, eu deixei cair o queixo sobre Augusto dos Anjos. Ela, é claro, percebeu, mas disfarçou pedindo “uma água com gás, por favor!” Amaldiçoei minha cerveja e desejei que Andrade saísse dali correndo, levando a história da revolucionária judia para longe do bar. 

Mas Andrade não saiu. E começou a falar alto sobre as aventuras e sofrimentos da revolucionária alemã, grifando verbalmente a palavra “mulher” constantemente. O sacana do Andrade queria mostrar o quanto ele tinha apreço e respeito por mulheres fortes e corajosas. Queria impressionar a dama sentada a nossa frente. “Entenda, meu amigo, que essa MULHER era de uma fortaleza incrível. Desde menina já se engajou nas fileiras anarquistas e comunistas na Alemanha. MULHER de fibra!”. Entretanto, a tática do Andrade parecia não surtir nenhum efeito, pois ela não tirava os olhos do celular, digitando uma mensagem, bebericando sua água com gás e cruzando e descruzando as pernas de um lado para o outro, num balé digno das mais dedicadas dançarinas do Moulin Rouge. 

“Ela foi uma das mulheres mais fortes da história da humanidade”, quase berrava Andrade “Uma vadia!”, sussurrei. “A Olga era uma vadia? Tá louco?”. “Estou falando da dona aí em frente, seu babaca!”. “Ah, sim... Mas então... O desgraçado do Getulio mandou-a para as mãos dos nazistas, grávida..”. Hã, hã... É verde claro!”, disse eu. “O quê, cacete, o que é verde claro?”. “A calcinha dela. A calcinha dela é verde claro!”. “Da Olga?”. “Claro que não, estou falando da dona ai em frente... Ah, deixa de ser chato, Andrade!”. “Não, não é! É azul!”. “Hein? O que é azul?”.“A calcinha, a calcinha é azul...” Andrade deu uma gargalhada escandalosa que fez com que todos dentro do bar se virassem em nossa direção. Ou melhor, quase todos, pois a mulher, alvo da nossa atenção, continuava impassível, digitando no celular e cruzando e descruzando as longas pernas numa rapidez impressionante.

Quase saímos na porrada para definir a cor da calcinha da moça. E concluímos que era um tom entre o azul e o verde. “Azul esverdeado”, como achei de definir, ou “verde azulado”, como Andrade ainda queria. E quando tínhamos chegado a um consenso sobre a cor da calcinha, o balé de pernas simplesmente cessou. A “bailarina” juntando os joelhos fechou o celular, pediu a conta e saiu pela porta, atravessando a rua a passos rápidos e entrando num carro estacionado, que rapidamente desapareceu na primeira esquina, enquanto eu e Andrade ficamos totalmente em silêncio, como que nos culpando mutuamente.

Olhamos cada um aos nossos livros e em silêncio destrocamos os títulos, como nunca tínhamos feito antes. E nos despedimos sem uma palavra sequer, indo cada um para um lado da rua, com seu livro debaixo do braço. A vida, parece, tinha entrado em um carro e desaparecido minutos antes. Mas ainda tínhamos aos nossos livros e possivelmente em algum outro sábado de sol estaríamos de volta ali, naquele boteco sujo, onde a vida parecia existir. 

29/11/2012
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(Após a última leitura, o texto "definitivo" ficou assim. Apenas suprimi uma frase e algumas palavras) .  

Sobre Amigos e Calcinhas


No último sábado, um calor desgraçado desde o amanhecer, e eu ainda de cuecas tomava meu café, quando o telefone tocou. Era o Andrade, meu melhor amigo há quase 30 anos, convidando para uma "conversa molhada", como sempre se referia aos nossos papos regados a cerveja num "pé-sujo" do bairro. Andrade bebericava sua cerveja sem gelo e folheava displicentemente um livro quando cheguei, também com um livro debaixo do braço. Era uma espécie de código secreto, de senha, entre nós, desde quando nos conhecemos, essa coisa de aparecermos em nossos encontros sempre com livros, que no fim eram trocados e nunca mais destrocados. A minha senha daquele dia era: "Olga", de Fernando Morais, a do Andrade "Eu e Outros Poemas", de Augusto dos Anjos, que, por esquecimento e desleixo dele, já tinha sido minha senha há uns três anos atrás.

Nossas conversas sempre se iniciavam sobre os livros que usávamos como senha do encontro, mas naquele dia foi um pouco diferente, pois Andrade conhecia bastante a vida de Olga Benario, esposa de Luiz Carlos Prestes, morta durante a segunda guerra mundial, e eu sabia quase que de cor todos os poemas do único livro editado pelo poeta paraibano. Portanto, o prólogo daquele nosso encontro foi um tanto mais curto. E assim passamos muito mais rapidamente da literatura à vida real, segunda parte da nossa conversa, quando sempre falávamos sobre família, mulheres, filhos, essas coisas corriqueiras, mas essenciais. Afinal, como dizia sempre o Andrade parafraseando Oscar Wilde: "A literatura antecipa sempre a vida. Não a copia, amolda-a aos seus desígnios." 

“Ô, cidadão”, gesticulou Andrade ao dono do bar “manda outras duas, a minha sem gelo!”. Mas enquanto o homem abria as cervejas, algo mudaria o roteiro de nosso encontro. Uma mulher belíssima, usando uma saia minúscula e possuidora de um belo e longo par de pernas adentrou ao bar e sentou-se na mesa em frente à nossa. Andrade deixou cair os óculos sobre “Olga”, o homem do bar a cerveja sobre a mesa e eu, bem, eu deixei cair o queixo sobre Augusto dos Anjos. Ela, é claro, percebeu, mas disfarçou pedindo “uma água com gás, por favor!” Amaldiçoei minha cerveja e desejei que Andrade saísse dali correndo, levando a história da revolucionária judia para longe do bar. 

Mas Andrade não saiu. E começou a falar alto sobre as aventuras e sofrimentos da revolucionária, grifando verbalmente a palavra “mulher” constantemente. O sacana do Andrade queria mostrar o quanto ele tinha apreço e respeito por mulheres fortes e corajosas. Queria impressionar a dama sentada a nossa frente. “Entenda, meu amigo, que essa MULHER era de uma fortaleza incrível. Desde menina já se engajou nas fileiras anarquistas e comunistas na Alemanha. MULHER de fibra!”. Entretanto, a tática do Andrade parecia não surtir nenhum efeito, pois ela não tirava os olhos do celular, digitando uma mensagem, bebericando sua água com gás e cruzando e descruzando as pernas de um lado para o outro, num balé digno das mais dedicadas dançarinas do Moulin Rouge. 

“Ela foi uma das mulheres mais fortes da história da humanidade”, quase berrava Andrade “Uma vadia!”, sussurrei. “A Olga era uma vadia? Tá louco?”. “Estou falando da dona aí em frente, seu babaca!”. “Ah, sim... Mas então... O desgraçado do Getúlio mandou-a para as mãos dos nazistas, grávida..”. Hã, hã... É verde claro!”, disse eu. “O quê, cacete, o que é verde claro?”. “A calcinha dela. A calcinha dela é verde claro!”. “Da Olga?”. “Claro que não, estou falando da dona ai em frente... Ah, deixa de ser chato, Andrade!”. “Não, não é! É azul!”. “Hein? O que é azul?”.“A calcinha, a calcinha é azul...” Andrade deu uma gargalhada escandalosa que fez com que todos dentro do bar se virassem em nossa direção. Ou melhor, quase todos, pois a mulher, alvo da nossa atenção, continuava impassível, digitando no celular e cruzando e descruzando as longas pernas numa rapidez impressionante.

Quase saímos na porrada para definir a cor da calcinha da moça. E concluímos que era um tom entre o azul e o verde. “Azul esverdeado”, como achei de definir, ou “verde azulado”, como Andrade ainda queria. E quando tínhamos chegado a um consenso sobre a cor da calcinha, o balé de pernas simplesmente cessou. A “bailarina” juntando os joelhos fechou o celular, pediu a conta e saiu pela porta, atravessando a rua a passos rápidos e entrando num carro estacionado, que rapidamente desapareceu na primeira esquina, enquanto eu e Andrade ficamos totalmente em silêncio, como que nos culpando mutuamente.

Olhamos cada um aos nossos livros e em silêncio destrocamos os títulos, como nunca tínhamos feito antes. E nos despedimos sem uma palavra sequer, indo cada um para um lado da rua, com seu livro debaixo do braço. A vida, parece, tinha entrado em um carro e desaparecido minutos antes. Mas ainda tínhamos aos nossos livros e possivelmente em algum outro sábado de sol estaríamos de volta ali, naquele boteco sujo, onde a vida parecia existir. 

30/11/2012

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