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02/11/2019

Barra, Barata, Barcelos

Barra, Barata, Barcelos
Barata Cichetto



Somos três amigos. Um preto, um branco e o outro mulato,
E desafiamos aos sentidos, do estrito, do restrito e do lato.
Disseram que não podíamos ser, dividiram as nossas cores,
E mentiram que éramos menores que nossas próprias dores.

A igualdade é o que temos, a desigualdade é o que querem,
E se somos diferentes somos melhores do que nos preferem.
Insistem que deixemos de ser o que somos, da cor ao penhor,
E que assim tenhamos um único amo, proprietário e senhor.

Não somos escravos de nossas peles, corpos meras carcaças,
E assim, diferentes irmanados em nossas próprias desgraças.
Mostraram o caminho do ódio que nunca quisemos por bem.
Conceitos que não nos pertencem, e os lucros são de alguém.

Barra, Barata, Barcelos, três amigos com honradas histórias,
Profetas poetas, em outras eras cobertos seriamos de glórias.
Temos as cores, mas cores não nos culpam, e nem absolvem,
Mas por elas é que as areias geladas deste mundo se movem.

Somos três seres. E fossemos um e seriamos bem menos,
Pois querem que nós nos dividamos, não que somemos.
E por Barra, construtor que une a argamassa com cal frio,
A Barata junta-se Barcelos, o profeta com olhar de arrepio.

Penso agora sobre meu destino e em cantigas do meu exílio,
E na esquina da Gonçalves Dias realizamos nosso concílio,
Crânios dos cachorros, troncos calcinados e esculturas finas,
No lombo trazemos a verdade e nas mãos carregamos sinas.

Percorrem as pernas cansadas os trilhos de aço da ferrovia,
Sobre dormentes de madeira o som que há muito não ouvia.
Há velhas máquinas que gritam na madrugada rumo à morte,
E um velho guardião dos rios, segue traçando a própria sorte.

Não há ordem no caos, nem justiça na terra da barbárie,
E o dente social, na boca do mal é o que sofre com cárie.
Bodes usam coturnos, e porcos fumam charutos cubanos,
O que nos resta é a solidão dos últimos redutos humanos.

Entre as linhas da pele nossa própria história escrevemos,
Falamos o que ouvimos e enxergamos além do que vemos.
Dois séculos e tanto mais somam todas as nossas idades,
Então fazemos do tempo um cavalo alado de realidades.

O que importa é o caminho, e não aonde queremos chegar,
Importante são os pés, e não a estrada, o terreno e o lugar.
De aço é o trem e os trilhos, e de madeira são os dormentes,
E a terra fria do cemitério único remanso de nossas mentes.

Somos em três: um é profeta, o outro poeta, e um é pedreiro,
E nunca sabemos quem é um, o outro ou quem é o primeiro.
Falamos em círculos, por mesóclises ou por colorida elipse,
Um triângulo escaleno, ênclises, e cavaleiros do apocalipse.

Barra, Barata, Barcelos, ou em qualquer ordem três profetas,
Que o mundo insano insulta como se fôssemos meros poetas.
Trajamos armaduras dos guerreiros, ultrajamos o estandarte,
E fazemos do que somos, muito além da existência, pura arte.

27/10/2019
©Luiz Carlos Cichetto - Direitos Autorais Reservados

25/10/2019

Cargas do Presente, Trilhos do Passado, Futuro Sem Rumo

Cargas do Presente, Trilhos do Passado, Futuro Sem Rumo
Luiz Carlos Cichetto



Há mais de um ano morando em Araraquara, na Vila Xavier, perto do centro da cidade, e esperando o momento certo: filmar a passagem do trem da Rumo (ex ALL), em sua chegada. Já tirei inúmeras fotos, mas nunca consegui estar no momento exato em que se aproxima. Ontem, por "acaso", consegui. Quando percebi a composição chegando, me posicionei bem ao lado dos trilhos, saquei o celular e apontei. Estar a menos de um metro da composição, sentindo a trepidação do chão me deu um pouco de medo no início, mas valeu. As trepidações da câmera são pela vibração da passagem, e o vídeo está em tempo real, com os pouco mais de cinco minutos que durou. Quem tem interesse e admiração por trens como eu, decerto irá gostar sentir o que eu senti e entender a emoção. Só lamento que todo o sistema ferroviário do país, que nasceu e cresceu pelo trabalho de pessoas como o Barão de Mauá, tenha sido sucateado, e hoje quase não reste mais nada, a não ser essas linhas de carga operadas pela Rumo. Mesmo essa linha está com os dias contados, já que as áreas que ela ocupam estão no centro da cidade e, claro, a prefeitura tem outros planos, como entregar à especulação imobiliária, com a desculpa de que "a população da cidade não quer o barulho dos trens". Que esse vídeo sirva de registro futuro, quando as cidades não mais terão trens.

 Araraquara, 25/10/2019
© Luiz Carlos Cichetto - Direitos Autorais Reservados


19/08/2019

Putas de Araraquara no Xvideos

Putas de Araraquara no Xvideos
Barata Cichetto


Era uma madrugada fria na normalmente quente Araraquara. Eu não conseguia dormir e liguei o computador.  Depois de andar por sites de vídeos pornográficos e outros de garotas de programas decidi escrever. Mas, sem nada na cabeça, a não ser putaria, sobre o que poderia escrever? Claro, putaria! 
Ando com o saco cheio de escrever putaria. Putaria, só putaria, sacanagem, pau no cu, pau na buceta. Um monte de bandalheira pornográfica que só serve pra encher linguiça e quem sabe fazer algum punheteiro soltar a imaginação, ou até mesmo e quem dera, alguma mulher soltar o dedo. Ademais para mais nada.
Fiquei olhando para a tela do computador e mexendo os dedos pensando sobre o que iria escrever. Eu tinha visto um monte de cenas muito tesudas nos vídeos e fiquei excitado, de pau duro, mesmo. Então pensei que o lógico seria escrever sobre o quanto eu ficava com tesão vendo gente se comendo, se fodendo, se chupando em vídeos pornôs. O Xvideos é pura poesia, neguim! 
Pensei e descrever alguns vídeos, depois criar alguma história engraçada sobre eles, mas aquilo é poesia, como eu já disse, e poesia não tem a menor graça. Coisas que deixam a gente de pau duro não tem a mínima graça. E poesia, nem a erótica, deixa ninguém de pau duro. A não ser algum poeta pau no cu, frustrado. Ficar de pau duro com poesia é de cair o cu de dentro das calças. Poesia é coisa de cara que não trepa. Quem trepa não tem tempo de pensar em poesia. Aliás, nem lembro mais quando trepei... Acho que foi a semana passada. Ou o mês passado? Que diferença faz quando foi? E nem lembro se foi bom. Acho que não, se tivesse sido eu iria lembrar. 
Porra, ninguém mais trepa nessa porra de planeta sem filmar? Caras de pau mole enfiando em bucetas secas, e mulheres olhando pra câmera. E o tesão donde que fica? Na pica é que não é. Nem na buceta! Fica na greta. Na grelha. Na telha.
Antes era melhor: a gente pegava o telefone e ligava pra uma puta e fazia a festa. Agora só bate punheta olhando gente sem graça, fazendo sexo sem graça. Parece até poesia isso. 
E assim se foi a madrugada. Não comi ninguém, nem bati punheta, mas em compensação estou terminando este texto e preciso dormir. Acabei nem escrevendo porra nenhuma. Nada do que está escrito tem graça, nada foi dito e nada foi lido. É tudo virtual nesse mundo de mentiras. Amanhã vou escrever uma poesia erótica, tá?

19/08/2019

13/08/2019

Exumação

Exumação
Ao Amigo João Barrá
Foto: Luiz Carlos Cichetto, Cemitério das Cruzes ("Britos", Araraquara - SP

Confortem-se! Aceitem! A poesia morreu. De inanição. De falta de visão. Mas estava lúcida a coitada. Não ouvia direito. Não falava direito. Na verdade só chorava. Faleceu. Está morta a pobre. E nem no velório alguém recitou um verso. Em homenagem póstuma. Ninguém derrubou uma lágrima. Ninguém se aproximou do caixão. Nem pediu perdão. Nos celulares muitos concentrados. Preocupados. Com a eleição. A poesia se foi. Foi-se. Não houve missa de corpo presente. Nem discurso de presidente. Outros então contando piada. De polícia e ladrão. Mas não. Ninguém lamentou. Ninguém percebeu de fato. O fedor da defunta. Suas roupas rasgadas. E sua boca costurada. A poesia está morta. Foi sepultada como indigente. Num caixão. Sem paixão. Em cova rasa. Num cemitério clandestino distante da cidade. Ninguém pediu justiça. A beira do túmulo. E por cúmulo. O prefeito pediu a palavra. Como se soubesse o que é palavra. E disse: Que morra a poesia. Mas que sobrevivam os porcos. Todos foram para casa. E na sepultura nenhuma flor. E a chuva nem caiu. E ninguém sentiu. Pediram exumação. Abriram a campa. Não haviam restos mortais. Apenas cinzas. E o processo foi encerrado. E nunca foi noticiado.

13/08/2019

08/08/2019

Ah, Se Eu Fosse Igual...

Ah, Se Eu Fosse Igual...
Barata Cichetto

Não fosse idiota podia ser tão famoso quanto Paulo e suas filhas,
E ser uma estrela da poesia, feito Alice em Paris das Maravilhas.
Ou se não fosse tolo, quem sabe seria tão conhecido como Piva,
Daí eu estaria morto, mas ao menos minha poesia estaria viva.

Não fosse eu um pai seria apenas um filho, mesmo que da puta,
E seria astro da literatura falando sobre a dureza da minha luta.
Pelas feiras literárias eu seria chupado por um par de proscritos,
E as editoras pagariam adiantado pelos romances nunca escritos.

Se eu fosse um tanto esperto estaria em Paraty igual a um artista,
Circulando de chapéu e gravata borboleta entre a elite comunista.
Eu nem lembraria o que tinha dito, mas leriam minhas memórias,
E o que tinha escrito todos pensariam ser parte de suas histórias.

Fosse um malandro, desses que colocam "Poeta" antes do nome,
Eu daria entrevistas na televisão e explicaria o meu sobrenome.
Comeria um par de putas vesgas, e eu seria famoso até o jantar,
Onde poriam minha cabeça na bandeja depois de me acorrentar.

Ah, se eu não fosse tão otário seria tão bom quanto a Medeiros,
E esconderia meus versos mortos debaixo de dois travesseiros.
 Seria chamado de "Bukowski de Araraquara" ou outro truque,
E exibiria o pau em público e postaria na página do Facebook.

Se fosse esperto eu seria como o Diego, ou até como o Morais,
E contaria uma história triste com sórdidos contornos morais.
Enfim, fosse eu diferente do que sou, poderia ser um alguém,
Mas não seria o que sou, e no final seria apenas um ninguém.

07/08/2019


03/08/2019

Araraquariana Nº 4

Araraquariana Nº 4
Barata Cichetto

Tem uma santa parada na esquina, pedindo carona a transeuntes de muletas e andadores. Uma santa de carne, pouca, e ossos fracos. E lábios tão finos que nem aguentam segurar um cigarro. Ela treme e gesticula do jeito tosco como se mexem as santas, e também as loucas. A esquina é seu ponto, e mal aponto, ela me chama de namorado, pedindo oitenta sem trocado, implorando que eu ame o seu pecado. A esquina é da Brasil com "Um", que tem nome de poeta. E um McDonalds bem em frente. Ela é diferente por ser indiferente, e agora ela quer cem. Aceita cartão de débito e do Bolsa Família, e me conta que é filha de mãe solteira de pernas longas, e de um pai que anda preso em Curitiba. Dentro do bar bêbados lhe sorriem e passam a mão nas pernas de outra a quem chamam de Bailarina. Da calçada ela me chama, falando que me ama, agora por cento e vinte: há um preço por uma santa, conta ela balançando os cabelos negros encaracolados. É o custo da carne seca no supermercado. Preço marcado tatuado em sua alta testa. Ah, mas ela não presta, é apenas outra santa sem nome, e santas não matam a fome: santas sabem ser putas. Ela me chama de pai, e quer se minha filha. Diz que podemos ser, nós dois, uma grande família. Desde que eu pague cento e cinquenta. Eu com sessenta, e ela com quarenta. Uma família de cem. E ela tem uma filha de vinte, então passa de cento e vinte com a menina. Nós três e a cocaína. Uma bela família burguesa, trajando bandeiras vermelhas. A filha não é santa, é menina de família. Que não faz anal. Nem mal. Nem bem. E ela cobra só cem.  Seu olhar é de faca, a carne é fraca e eu não tenho dinheiro. Ela pede o meu tudo, não como santa, mas como pastora de igreja neopentecostal, ou qualquer coisa que eu ainda possa possuir. Dou-lhe duas moedas e uma caneta, digo que escreva um poema. Mas ela é uma santa, e santas não sabem escrever. Poesia. Chega o preço a duzentos e com mais quinhentos, eu chego ao valor de mercado, por uma santa. Então pego emprestado, pago adiantado. E depois de trocado, saio ferrado, lamentando meu pecado: ela é uma santa, e santas não sabem foder.

03/08/2019

01/08/2019

Araraquariana Nº 3

Araraquariana Nº 3
Luiz Carlos Cichetto
Foto: Barata Cichetto

Fujo das tenebrosas brumas. Dunas dolorosas. Arenosas ruas trajadas de asfalto e sujeira. E na perfídia insidiosa encontro apenas frio onde um dia morou o Sol. O Paraíso e o Inferno são um só. Deus e o Diabo jogando dominó. Putas fogem de mim feito a fama. A fortuna. E os filhos de uma puta a quem chamei de meus. São seus os filhos. Meus são os trilhos. Da estrada de ferro onde encerro meu caminho. Tão enferrujados quanto eu. E as locomotivas que dormem nos dormentes. Na estação abandonada há uma guarda noturna. Tão soturna e abandonada quanto eu. E a estação. Objeto de desejo a meu alcance. Minha mão trêmula tremula feito bandeira manchada de sangue hasteada pelo meu braço mastro. Hasteio minha bandeira. Inteira. E abraço suas pernas finas e brancas. Retiro seus óculos de hastes negras e duras. E entre juras de orgasmos ejaculo. Na pele enferrujada e dormente do seu rosto. É Agosto. E eu ainda nem sei o gosto do teu ser. À gosto do seu ter. E por desgosto ainda espero com um copo de bebida quente. Que o ultimo cliente. Solte a tua mão. À contragosto. Mas não tem preço o teu apreço. Por dinheiro e emoção. Então me esqueço da tua depilada. E te aqueço pelada. Na beira da estação. Qual estação? Inverno. Inferno. Ou Paraíso. Talvez na próxima. Eu possa descer. Do trem. Nessa não tem. Ninguém. Quem sabe na outra. O trem do tempo saia dos trilhos. Talvez na Primavera. Quem sabe talvez no Verão. Eu possa lhe dar meu tesão. Ainda é tempo. Ainda há tempo. Desde que eu pague a prestação. Na beira do Museu. Que não é seu. Que nem é meu. Agora me deixe embarcar no teu trem. Pagar a passagem. Carregar tua bagagem. Te dizer bobagem. E depois tirar tua roupa. Me deitar entre os dormentes podres. Da tua cama. E te amar. Do mesmo jeito que se ama. Quando se quer esquecer.

01/08/2019

25/07/2019

Araraquariana Nº 2

Araraquariana Nº 2 
Luiz Carlos Cichetto

Cheguei à cidade. Forasteiro. Desarmado. De braços abertos. Fui recebido. A balas. Então saquei minhas almas. E caí. Ferido. Mas cai atirando. Com a mão direita. Que a esquerda é inútil. Tinha botas de cowboy. Que gastaram na estrada. Chutaram a boca. Do meu estômago. E eu senti a dor. Mas não morri. Corri. E me escondi. Num vagão enferrujado. Mas não era o bastante. Fui encontrado. E morto. E esquartejado. Ao som da "Internacional". Fui sepultado. Feito bandido. Ressurgi. Ainda ontem. Quase Agosto. Depois de um ano. Como quem ressuscita. Por desgosto. E jurei que nunca mais. Eu morreria. Por que ainda não era. O dia de estar morto.

22/07/2019

22/07/2019

Araraquariana Nº. 1

Araraquariana Nº. 1
Luiz Carlos Cichetto
Foto: Barata Cichetto

Querem acabar com o trem na cidade. E agora? Como eu faço? Para cometer suicídio? Sem um trem para pular na frente? O prefeito disse que ninguém quer o trem dentro da cidade. É mentira seu prefeito. Imperfeito idiota. Agiota perfeito. Que eu ao menos quero o trem. Dentro da cidade. Fora da cidade. Ou com a cidade inteira no bucho. Feito serpente cobra coral. De aço... Querem arrancar os trilhos. Do trem da cidade. E agora? Como eu faço? Sem ter por onde caminhar? O prefeito suspeito. Mandou embora a locomotiva. A Maria foi. Nunca mais voltou. A andar na linha. Nos trilhos. Que agora querem arrancar... Querem acabar com o trem. E ainda tem. Gente que também quer. É o sujeito. Que mora ali perto. Que reclama que não pode dormir. E eu nem reclamo. Que moro perto. E sem o trem. Não posso morrer... Querem acabar com o trem. Do mesmo jeito que a mim. E seu aço. Ainda resiste ao tempo. Ao temporal. E ao prefeito. Imoral. Mas eu não resisto. Sou de carne...  Querem arrancar os trilhos. Da cidade. Que a eletricidade. Precisar passar. Arrancar os filhos. Por necessidade. Por vaidade. Por maldade. E por vontade. De um. Que é nenhum... É preciso não navegar. É preciso não viver. É preciso não correr. Na frente do trem... Querem destruir a estrada de ferro. E se não erro. É por decreto. Secreto. Do executivo. Que tem poder. É por dinheiro. Sem direito. A escolher... Querem mudar a história. Da cidade. Colocar outra em seu lugar. Arrancar o apito. Arrancar o grito. Mas eu repito. Não arranquem. Que eu resisto. Feito a estação... Dementes querem retirar dormentes. E vender à prestação. E a condição. É o pleito. Do eleito. Um sujeito sem trilhos. Sem filhos. E sem coração. Apenas vagão... Então o jeito. É arrancar o prefeito. E deixar os trilhos. Deixar eu jogar. Na frente do trem. A carne que restou. De mim. Enferrujada. Feito o trem. Que não tem. Onde morar. Que não tem estação. Onde parar.

21/07/2019

07/06/2019

Nenhum Lugar Haverá a Ver

Nenhum Lugar Haverá a Ver
(Homenagem Crítica à Araraquara do Acadêmico Ignacio de Loyola Brandão)
Luiz Carlos Cichetto
Foto: Barata Cichetto, Araraquara, 2018

Tinha ficado tão quente que os pássaros morriam torrados em pleno voo ou ficavam grudados no asfalto derretido ao pousarem. As guias das ruas saltavam do meio fio feito pipocas de uma panela sem tampa; rabos incendiados corriam de cachorros e cabelos viravam tochas. 

As rochas inchavam e as gordas eram transformadas em poças de gordura onde crianças nadavam como numa tarde depois de um temporal. As nuvens subiam e escorriam como se fossem o lençol do sol, e tudo parecia torto e morto, queimado e inchado, e mais nada poderia ser feito, por nenhum sujeito, e nenhum prefeito foi candidato a ter ser retrato exposto, em Agosto, na Morada do Sol.

Zero é igual a nada, ou o nada é igual à zero? E entra na Academia o general escritor, de fardão ou camisola de dormir, e antes de sumir, ainda acena à multidão na Praça da Matriz, que por um triz não solta a serpente do porão. E do portão, a meretriz da Brasil, de fogo nos dentes, ainda perde clientes, por falta de sol
.
A situação deu desculpas, a oposição apontou as culpas, enquanto a cidade morria, derretia e escorria, debaixo do sol. E não tinha demônio de efeito, nem anjo perfeito que pudesse conter. Consertaram os defeitos, soltaram os sujeitos; aclamaram corruptos putos e chamaram as putas às lutas, mas mesmo assim, tudo parecia apenas fazer crescer a fúria. E com a injuria da cúria, chamaram os padres, os pastores, e os eleitores de senhores. E as senhoras das horas, presas damas das camas e represas damas, eram chamadas à guerra.

E tudo o que acontecia, diziam, era culpa do patrão, o empresário ladrão, que tinha o padrão de desculpa de ter sempre a mão, o vereador, amigo do ditador, cunhado do estivador, primo mais distante do conquistador. E tudo era obra, maldiziam, daquele que cobra, por seu dever, de achar direito, o que é desfeito sem se ver. O pau que bateu em Brito bate em cabrito, e Edson sabe ser vil. E se ninguém sabe e ninguém viu, alguém comeu e depois sumiu.

E tudo era caos e desordem, por ordem de quem, decreto de ninguém, decerto de alguém, mas que podia ser bem do além, mesmo que fosse aquém do bem, ou do mal. Mesmo uma estátua de sal, um ser anormal, ou bem igual, a qualquer ser. 

Assim já não tinha mais carros, parados com seus pneus derretidos e seus motores fundidos; as locomotivas derreteram e seus vagões feridos; sem rumo e sem destino. E assim não tinha mais tempo, com relógios com ponteiros grudados, travados na meia noite, ou meio dia. E já não se sabia se era noite ou se podia amanhecer. E o envelhecer, ninguém viria a conhecer.

E já não se podia subir e nem descer, surgir ou crescer, já que tudo não era mais nada, a não ser calor. E qualquer valor nada mais tinha, porque nada mais vinha de lugar algum, pois não tinha mais lugar nenhum. Em nenhum lugar. Nenhum lugar havia a ver.

07/06/2019

28/03/2019

Opúsculo Sobre a (Minha) Morte

Opúsculo Sobre a (Minha) Morte
Luiz Carlos Cichetto

Trilhas Sonoras: 
David Bowie – My Death
Psychotic Eyes - Life
King Crimson - Epitaph
Cemitério dos Britos - Araraquara - Foto: Barata Cichetto, 2019

Sou um escritor fracassado, mas não se preocupe, querido leitor ou leitora, que não farei outra daquelas histórias de escritores mal sucedidos, que nunca são editados, que não comem ninguém, nunca ganham prêmios literários e que, por algum golpe de sorte, pacto demoníaco ou qualquer coisa fortuita, acabam se dando bem, e acabam com seu livro virando best-seller e se mudam de galpão sujo e cheio de ratos, para uma cobertura cheia de putas, no alto de um prédio de New York ou São Paulo, quando não para uma casa na praia.

Escritores adoram falar de escritores, principalmente os fodidos, o cinema adora contar histórias de escritores, especialmente dos inexistentes. Mesmo que sejam maus escritores, que não saibam ser escritores ou que sequer saibam escrever. Eu mesmo já falei mal de escritores, brinquei de ser rebelde e quis me isolar no alto de uma montanha, ser um escritor recluso, mas de preferência famoso, ganhar uma grana preta e comer mulheres maravilhosas, em noites de autógrafos e em camas desarrumadas. Dão boas cenas de livros e filmes esses cenários.

Ah, sim, esqueci-me de falar das histórias de escritores que não gostam de escrever, mas gostam de beber, apostar em corridas e dizem que não são escritores, apenas para parecerem... Escritores. Sem contar a de outros, que morreram sem publicar, mas que ficaram famosos depois de mortos aí então foram aclamados como gênios póstumos e tiveram suas obras em edições esgotadas. Há tantas que daria para encher um livro e o seu saco com lamúrias e coisas mirabolantes, e depois, quem sabe, meus bolsos de dinheiro, se é que alguém ainda consegue isso.


Mas como eu dizia, sou um escritor fracassado, mas não vou me queixar, nem contar minha inglória história sobre como me tornei escritor, até por que, somente escritores ricos contam essas. Aos outros, como eu, apenas podem contar lorotas em mesas de botecos, quando tem botecos aonde possa ir, ou aos netos, quando os tem. Portanto, não lhes contarei a história da minha vida, mas da minha morte, já que estou completa e totalmente morto.

Sei o que dirão, que isso também não é algo inédito, que muitos já narraram sobre suas próprias mortes, escreveram como se estivessem mortos, suas existências pós-existência. Foram muitos, e sempre renderam belas narrativas. De todas, o grande mestre Machado com seu Brás Cubas, é a mais fabulosa de todas. E eu, que jamais ficaria a altura do dedinho mindinho dos pé do fundador da Academia Brasileira de Letras, jamais me atreveria a fazer uma narrativa semelhante, e sequer teria tantos fatos póstumos a relatar, quanto o impoluto Brás Cubas.

Então pergunto ao caríssimo leitor, que não é um verme que tomou minhas carnes ainda vivo, mas que me roeria rapidamente dentro do caixão, depois de uma parada cardíaca ou cerebral, que espécie de história espera que eu lhe conte depois de morto? Que espécie de conto eu escreveria depois de falecido? Que poema eu versaria depois de estar enfiado numa tumba escura? E principalmente pergunto ao amado e querido ou amada e querida - que ainda acredito que seres humanos são machos e fêmeas - se de fato estaria com disposição para ler as histórias de um morto.

Que maldita sina ou mórbido desejo assola a mente humana em deixar morrer para depois consagrar em estátuas? Que torpe sorte é a dessa raça estúpida que prefere o que está morto e podre? Sequer urubus comem carnes pobres, é dito, mas aos humanos, que não comem suas próprias carnes dos seus próprios mortos, mas que devoram as almas dos vivos, cabe o infortúnio da desculpa, no lugar da torpeza da culpa. Cabe-lhes a maldita perfídia de amar aos mortos e odiar aos vivos. Sobram-lhes lutos pesarosos e faltam-lhes respeito ao que sonham.

Então lhes disse que estou morto, mas nenhuma prova material existe de que eu esteja de fato morto. Nenhum médico comprovará que meu coração tenha parado de bater, nenhum cirurgião que comprove que meu cérebro cessou, nenhum coveiro jamais testemunhará que me sepultou a sete palmos, e nem mesmo uma testemunha irá depor sobre o assassinato de que fui vítima. Não haverá provas de latrocínio, e sequer nenhum frasco ou corda, e nem mesmo uma carta que comprove meu suicídio. Portanto, nenhum tribunal poderá condenar a ninguém sobre a minha morte, nenhum presídio receberá o criminoso e nenhum padre dará a absolvição eterna.

É claro que eu gostaria de saber o que falam sobre mim, ao redor do meu caixão, e receber as lágrimas no rosto morto, das mulheres a quem tive nos braços, das que gostaria de ter tido, e das que gostaria que eu as tivesse; é claro que eu gostaria de ouvir as confissões intimas que se faz em velórios, sobre o morto, e que jamais fariam se vivos; é lógico que me agradaria saber sobre quantos ali, naquela sala com horroroso cheio de velas e flores tão mortas quanto eu, leram o que eu escrevia quando minhas mãos ainda não estavam cruzadas sobre o peito, mas deslizavam segurando uma caneta num papel. Eu me sentiria vingado pelo remorsos daqueles que me traíram, pelas lágrimas dos que me roubaram a alegria, e especialmente, me sentiria um vitorioso pela ira infame daqueles que não conseguiram me matar.

Eu comecei dizendo, ou melhor escrevendo, já que palavras escritas comunicam, mas não dizem, que eu não faria das lamúrias minha crônica, mas como cumprir minha promessa, quando qualquer escritor que ao menos se imagine um, vive de tal artimanha, mesmo que não seja honesto com isso. Há histórias de amor sem perdas? Histórias de terror sem dores? Ou mesmo histórias cômicas sem alguém sendo prejudicado? Pensem bem, caros e caras, que concluirão que não existem histórias sem lágrimas. Ou melhor definindo, nada existe que não sejam de fato perdas.

Viver é perder. Algum filósofo já deve ter pensado e dito isso. Se não disse, digo agora. E se disse, que me perdoe o involuntário plágio. E se viver é perder, e sempre é, o que mais se pode perder na vida, já que ela própria está perdida? É por isso que a humanidade tanto precisa de religião, eu creio: para que se crie a ilusão de que haverá o ganho na morte. Para eles, o ganho está na morte, não na vida. E tudo isso é o que torna absurda a colocação "perdeu a vida", quando se noticia um falecimento.

Sou um filósofo! E que não tenha o leitor ou leitora de olhar maroto e preconceito escroto, pedir minha tese acadêmica ou meu diploma de doutor. Sou daqueles que solta frases de impacto encostados num balcão de bar sob urras de bêbados, que depois esquecem, da frase e do autor, assim que passa a bebedeira. Então, sendo um filósofo de boteco, me reservo o direito de não citar escolas de filosofia, nem os grandes pensadores da história. A filosofia é a arte do empirismo, do lirismo e do anti-estoicismo. Tenho o direito de considerar a garrafa meio cheia ou meio vazia como instrumentos filosóficos válidos. Quando meio cheia me embriaga, e quando meio vazia me estraga. Troco Platão, Nietzsche, e todos os grandes mestres pelos bêbados que contam piadas filosóficas sobre traídos e traidores, cornos e mansos, e depois entornam seus copos meio cheios e meio vazios goela abaixo para que a filosofia não os atormente tanto. E eles sabem, melhor que Epicuro sobre ataraxia, conhecem melhor que Schoppenhauer sobre o que é dor, calculam melhor que Pitágoras o triangulo equilátero que compreende seu polígono de excêntricos ângulos. E eles sabem melhor sobre o que é a morte, diariamente ao olhar no espelho.



Minha mãe teve dois abortos, um antes de mim e outro depois, o que poderia me fazer pensar que sou mesmo um espermatozoide de sorte. Ou fruto de um esquecimento ou da falta de oportunidade. Penso muito nos meus irmãos, que foram despejados numa latrina ou jogado numa caixa de restos hospitalares, pouco importa seu destino. Penso muito naqueles que não tiverem a oportunidade de serem espancados quando criança, de não terem sofrido violências na escola, de não poderem escrever sobre isso, e concluo que ao falar sobre isso, escrevo por eles suas memórias póstumas.

Eu poderia ter sido muitas coisas. Poderia ter sido engenheiro, advogado, médico, assassino, traficante, cafetão. Poderia ter salvado e morto a muita gente; poderia ter sido rico e morado em casas luxuosas, com empregadas gostosas que eu teria comido nos quartos dos fundos; poderia não ter casado, não ter criado filhos. De fato eu poderia ter feito e sido tanta coisa que não fui, em detrimento do que fiz e fui, que tem horas que teria sido melhor não ter sido nada mesmo, pois assim não haveria o arrependimento e a duvida.

Escritores são seres frustrados, e ainda bem. Mas nem todos os frustrados são escritores. Alguns se tornam assassinos, o que de fato não tem lá grande diferença, já que esses são definidos por tirarem a vida alheia, e colocam a dor em seu lugar. Escritores também são assim, tiram vidas que não lhes pertencem colocando dor no lugar. 

Qualquer escritor mal sucedido nutre uma ideia absurda, em determinados momentos, de que compõe sua obra de qualquer forma, mesmo que não receba dinheiro, glória ou sucesso durante sua existência, para a posteridade, ou seja, para que seja lida e entendida depois de sua morte. Alimentam esses tolos, possivelmente movidos consciente ou inconscientemente por dogmas religiosos, de que assistirão depois de mortos, seus nomes sendo ditos em programas de televisão, seus textos sendo lidos em saraus ao anoitecer por leitores saudosos e lacrimosos. Acreditam, mesmo sem crer em espíritos, que estarão pairando no ar, ao redor do mundo, ouvindo e vendo elogios e loas à sua obra, que não teve durante sua vida, o que ele acredita como respeito e merecimento. E a esses eu digo: caso tenham oportunidade, ateiem fogo a tudo o que escreveram, pois além de tal cena jamais acontecer - mesmo que acredite em Céu ou Inferno garanto que existirão coisas mais importantes do que passar um documentário a respeito dos acontecimentos literários no mundo terreno -, aqueles que ficaram e não lhe deram a devida importância, não merecem. E mesmo que pensem nisso como um ato de vingança ou justiça. 

Ademais, àqueles que, dotados de um falso senso de humildade, pensam em deixar a descendentes um possível e futuro ganho que eles próprios não tiveram, pensem que nada esses contribuíram, já que a criação de um Homem é puramente individual, e nasce e cresce como fruto egoísta de uma mente. Um fruto que deve apodrecer junto com quem o plantou e colheu. O criador nada deve senão a ele próprio, e o produto da mente de um Homem é de sua exclusiva propriedade, e deve desaparecer junto com ela. A criação não pode ser deixada como herança, para usufruto daqueles que nada tiveram com ela, e que em muitas vezes, ao contrário, fizeram por ignorar, privando o criador, até mesmo do mais ínfimo respeito. A obra de um criador é uma dádiva dele para si próprio, e assim deve ser mantida e tratada. Nenhum ente invisível lhe deu qualquer dom, isso simplesmente não existe. A criação é fruto de seu acumulo de conhecimento, trabalho e vontade, sendo portanto um bem inalienável e intransferível.

As religiões abraâmicas acreditam na ressurreição, as orientais na reencarnação, já a neuropsicologia no chamado "eternal oblivion", ou seja, o esquecimento eterno, que é de fato da qual compartilho, e creio ser a mais honesta e a única que não carrega a vaidade no bojo. A ressurreição, quando o morto simplesmente se levanta e sai andando depois de algum tempo, quanto à reencarnação, quando o espírito passa a usar outro, são repletas de vaidade por todos os cantos, partindo do pressuposto que somos tão importantes para o Universo, que ele dará um jeito de nos recolocar de volta, de um jeito ou de outro. É dentro dessas duas formas que a maior parte dos escritores fracassados e ou vaidosos, se enquadram: acreditam que sua obra é tão importante que eles sobreviverão dentro delas. Muitos se imaginam ouvindo comentários de amigos, de editores, chegam ao cumulo de imaginar matérias de jornal ou revista, ou são reverenciados post-mortem. Sinto muito, queridos colegas, mas não terão nenhum tipo de consciência disso, se é que acontecerá. Portanto, façam o que puderem para escutar e ler sobre o quão boa ou ruim é sua obra agora mesmo, ou simplesmente morram sabendo apenas que fizeram o que queriam ter feito. A morte não atende a desejos de vaidade. 

Além do papel de baliza social e moral, tem outro lado das religiões, precisamente com relação à morte, e que não consta em escrituras. Quase todas as religiões do mundo tratam do pós-morte de forma a criar nas mentes de seus seguidores a ideia de que tudo será melhor. Seja como reencarnação, ressuscitação, ou simplesmente fazendo acreditar que ali está uma "existência", se tanto melhor que a "atual", tentam provar que há algo depois. E o que há de importante nisso? A humanidade não se conforma em que um dia tudo se acabará, que todos os seus feitos simplesmente ficarão para usufruto de outros, que suas memórias serão apagadas rapidamente daqueles que amam, que sua aparência, sua consciência e sua ciência, deixarão de existir. E isso, a seres tão vaidosos quanto somos é terrível. Não aguentamos pensar em tal estado de ausência total, do nada absoluto, e, portanto é de extrema utilidade a ideia de pós-morte, mesmo que não seja atrelada a coisas boas como anjos, deuses e harpas. Mesmo que seja num lugar cheirando a enxofre, com um diabo espetando a bunda, ainda assim é um conforto, afinal é melhor o Inferno do que nada. E então as pessoas seguem, mesmo que no fundo sintam que nada disso é real, acreditando, usando essas ideias como muleta contra a própria mediocridade, para acreditar que suas vidas são demais importantes para simplesmente deixarem de ser. E são, pois é exatamente a certeza de que um dia deixaremos de existir, o que deveria fazer com que vivêssemos muito mais intensamente do que vivemos, e tratar não de acreditarmos na eternidade no além tumulo, mas no exato instante; e por fim, tratarmos da própria existência não como prisão, mas como liberdade.

"Porque o salário do pecado é a morte", diz uma passagem da Bíblia cristã, onde há várias referências ao ser humano ser originalmente portador do que chamam de "Pecado Original". Católicos, inclusive, batizam recém-nascidos com o intuito de livrá-los. Toda a concepção do cristianismo é baseada na crença de vida humana como pecado e, portanto, passível de condenação á morte. Um entendimento claro dessas escrituras é que: "debaixo da lei de Deus, todos nós estamos condenados a morrer, por causa do pecado." Portanto, nascer é uma sentença de morte. Além disso, sabendo-se que o que chamam de pecado original é a desobediência gerada pelo desejo e consagrada pelo sexo, que além de prazer gera a própria vida, que criada de um pecado é punido com a morte. Uma espécie de reação em cadeia nessa lógica teísta que reduz os seres humanos, meros seres de barro soprado e costelas retiradas sem cirurgia, a simples espectadores das brincadeiras de uma deidade vaidosa e cruel, que como bom ditador, despreza a vida de qualquer outro ser, e o condena por um crime do qual sequer tem ciência. Em suma, para a fé cristã, a vida é desprezável e desprezível. 

Baseado ainda nesses pontos penso que as religiões que atuam dentro desses dogmas não deveriam condenar o aborto, já que ele seria exatamente a execução do projeto divino, ou seja a própria mãe que por ter feito sexo gerou o fruto de um pecado, ao matar esse fruto estaria simplesmente seguindo a regra ao pé da letra. Acontece que para essas igrejas, o salário do pecado não é a morte, e nem pode ser chamado de salário, mas de lucros e dividendos.

Todas as religiões calcadas no cristianismo existem apenas em função da morte. O estigma de Cristo, sua martirização e morte por crucificação. Todos os eventos desse ser, alegado filho de Deus não tem tanta importância quanto o exemplo de sua morte banhada em dor e sangue, para depois ser considerado santo. Pouco valor é dado a seus feitos em vida, mesmo que tenha ressuscitado mortos e transformado água em vinho, coisas que já seriam impossíveis a qualquer ser humano. O que tem mesmo importância é sua morte e sofrimento. E se para o tal Filho, pouco de sua existência tem algum valor, imaginem a seus fiéis seguidores, que mesmo que realizem feitos extraordinários, de nada valerão. A eles, o único objetivo da vida é a morte. A morte lhes serve a propósitos, da mesma forma que a estados totalitários governados por tiranos com seu exacerbado culto à personalidade. Com ossos de defuntos tanto as igrejas quanto as ditaduras erguem seus templos e palácios, cujas paredes são feitas de mentiras e pintadas com as cores do medo.

Quando meu avô morreu, no início da década de 1970, seu corpo foi velado na sala da casa, em principio sobre a mesa da cozinha. O costume até alguns anos, era que os velórios fossem realizados dentro das próprias residências. A ideia era que aquilo fosse uma espécie de ultima reunião de família e amigos, demonstrando o apreço desses para com o morto, que ia para o cemitério acompanhado de um enorme séquito, mesmo que não fosse uma pessoa famosa ou de posses. As viúvas ou viúvos e os mais próximos se vestiam de roupas pretas e se abstinham de divertimentos e conversas alegres durante muito tempo, em sinal de luto, ou seja, tristeza profunda em função da perda de alguém querido. Com o tempo, todas essas práticas e costumes foram sendo abolidas, junto com o próprio sentimento de perda e a própria tristeza passou a ser mais comedida. A morte passou a ser encarada apenas como um acontecimento social, com direito bebidas e comidas, e no máximo a imagem de uma fita preta no perfil de uma rede social. A banalidade da morte, seja de que forma for, transformou-a num ato tão normal quanto ir ao banheiro dar uma cagada, portanto, o que eu posso esperar quando me declaro morto, e nem sequer sou usuário de nenhuma rede social?

Antes se permanecia em luto, se encomendava missas e se chorava de tristeza por muitos e muitos anos. Fazia-se questão de recordar os feitos e malfeitos dos queridos, recordando suas existências durante várias gerações. O culto aos antepassadios, particularmente presentes em cultos de origem oriental ou indígena era reconhecido como respeito e homenagem. Entretanto, particularmente desde o final do século passado, o tempo foi se encolhendo, e as lembranças e sinais de respeito também. Nada dura mais que uma semana. A morte e sua tristeza duram apenas até a próxima festa. 

Aprendíamos a temer a morte, mesmo também sendo ensinados que dela adviriam uma recompensa celestial, e esse temor nos fazia mais forte, nos apegar mais a vida, apesar da tal recompensa. Depois aprendemos que não devíamos temer a morte, mas nos apegar somente à vida e suas recompensas, especialmente suas facilidades e alegrias, sem pensar que um dia tudo chegaria ao fim. E isso tornou nossas existências miseráveis e vagas. Sem o medo da morte, passamos a não dar valor á vida. 

Muitos escritores mal sucedidos em termos financeiros também acreditam serem mártires, que sua obra tem finalidades outras, que almejam o bem comum. A pior coisa de um ser humano é o auto sacrifício. A generosidade e o altruísmo, coisas tidas como representantes da bondade humana são as maiores fraudes criadas por ideologias e teologias com o intuito de lhes alimentar o enorme estômago e engordar-lhes as já volumosas panças. O pior exemplo é o do Cristianismo e de outras seitas similares que representam como figura humana o filho de uma deidade, impingindo a ideia de que a martirização deste deve servir de exemplo a toda a humanidade, que o sofrimento, a injúria e o sangue possam representar a expiação dos pecados de todos. Então, acabam esses escritores sendo no mínimo autoindulgentes, e enganando a si próprios, acreditando seu pagamento seja o bem comum. Enganado, resta apenas a tal espécie de escritor, a ilusão de que seu martírio irá livrar a humanidade, ou ao menos parte dela, de um pecado que jamais existiu. E ainda pedirá perdão em nome da multidão que lhe vira as costas.

Eu disse há parágrafos atrás que estou morto, mas é claro, que o leitor ou leitora acreditou que estava diante de uma metáfora sobre sentimentos de ausência, de tristeza extrema, de falta de perspectivas, de desejo de isolamento. E não deixa de estar certo, mas apenas ate certo ponto, pois não se trata aqui de um conto de literatura fantástica, ou sequer um dos inúmeros poemas que eu mesmo escrevi sobre isso, mas sobre algo muito real, mas nem por isso físico. Meu coração não parou, meu cérebro não cessou suas atividades, mas nem por isso posso considerar-me vivo, já que não existe motivo, razão ou circunstância que me classifique em tal condição. 

Excetuando-se os padrões biológicos citados, sobrariam os conceitos religiosos sobre morte e vida, que de fato os definem sem qualquer espécie de lógica, por se basearem em fatores comparativos esdrúxulos. Religiosos acreditam que a diferença entre a vida e a morte são tão grandes quanto um elefante e uma lagartixa, mas esquecem de que ambos têm quatro patas, por exemplo. Então, por acaso, podemos classificar como vivo um ônibus só por ele ser tão grande quanto o próprio elefante?

Escrevi que estou morto, e então aquele ou aquela que leu até agora fica pensando: que belo falastrão mentiroso é esse? Que ignóbil embuste é esse homem, que afirma estar morto, mas que escreve sobre isso? Então, sinto-me obrigado a lhe provocar, perguntando se não está tão morto quanto a mim, quem acredita não estar morto quem me lê. Deixe de lado suas crenças, jogue de lado este texto e mire seus próprios olhos no espelho. Esqueça tudo aquilo que eu escrevi até agora e procure vida nos seus olhos, procure-a em seu corpos, nos seus atos, e responda, não a mim, mas a si próprio, se há ainda lhe resta um sopro de vida, ou se sou apenas eu.

Quantos tapas aguentam um rosto? Quantos golpes aguentam um cérebro? E quantas chibatadas as costas? Qual é o limite da resistência? Qual é a conclusão? Só há uma conclusão, todo o restante são conjecturas de espíritos inquietos. Não existem limites para o sangue derramado, nem há limites para a dor. Limites são conclusões ou conjecturas? Torturas. Uma frase que expresse um conjectura termina numa exclamação, mas deveria terminar com um ponto de exclamação. A afirmação categórica da dúvida. Dor é pergunta, sangue é resposta; morte é pergunta ou resposta? Tenho tantas perguntas quanto forem suas respostas. Lembra que sou um escritor, fracassado, mas nunca derrotado, a não pelas suas próprias palavras escritas. Escrita é vômito. Rejeição. 

Quando eu era garoto, bem pequeno ainda, minha mãe tinha tanta reclamação a meu respeito, que meu pai tinha a obrigação de preparar uma ripa cuidadosamente, com lixa e verniz, um instrumento polido, com uma empunhadura que estava sempre à espreita sobre a pingadeira da janela da cozinha. E ele sempre com sua obrigação de me castigar diante da minha interjeição. Até que ela ficasse em cacos e minhas costas em brasa e cheias de hematomas. Sempre fui muito magro o que era extramente favorável à sua ira meticulosa e ruidosa. Ele sabia que podia me castigar quanto quisesse, mas que a elasticidade de minha pela era tão grande quanto da minha resistência. Eu ia além dos limites da dor, e um dia escrevi "filho da puta" com lápis na tal ripa. Ele nunca soube ao certo se fui eu, mas ela permaneceu ali, intocada, sendo corrida pelo tempo. Aquilo foi o primeiro capítulo do conto de terror que eu escrevi. Depois foi o segundo, quando comecei a acordar de madrugada sendo sufocado por um travesseiro, e acordando de manhã sem saber se tinha sonhado, embora meu rosto mostrasse as marcas rubras. Nunca mais quis escrever estórias de terror.

Minhas noites são claras e em claro, e a boneca de carne ainda dorme no canto do sofá. A de pano está abandonada num canto qualquer do quarto. Algum canto escuro e deprimente, parecido com minha mente. Seria eu capaz de matar? Estrangular a boneca de pano? Médicos e monstros caminham de mãos dadas dentro da escuridão. Por horas fico pensando, com a fumaça do cigarro queimando as pontas dos dedos. Seriam os cigarros a causa do meu câncer, ou a mentira por trás da fumaça? A filosofia não está no cigarro, mas na fumaça. A poesia jaz junto com boneca de pano no fundo escuro do armário do quarto dos fundos. Há sempre um quarto dos fundos, mesmo que não fique nos fundos. Ou em canto nenhum da casa. Todas as casas são assombradas, e os fantasmas sempre serão os outros. Como num filme em preto e branco exibido num cinema que não existe mais.

A tempestade derrubou um anjo. Ele agora está todo sujo de lama no fundo do quintal. Ninguém acredita que é um anjo, porque ninguém acredita em tempestades. Eu acredito na lama: acredito na terra de que são feitos os deuses e as casas, acredito na água que os dissolvem. Tudo é lama: tudo escorre e tudo morre, pelas tempestades.

Tem uma porta no fim de um corredor, e não sei se é de entrada ou de saída. Depois dela uma escada que não sei se é de descida ou de subida. E no fim há uma mulher, que não sei se é uma puta ou uma santa. Nada é certo, nada é errado, tudo é apenas tudo. Não existe o nada, como não existe o não. Tudo é um eterno sim, girando e girando, feito uma espiral sem fim. Nada é nada. Somem zeros e não terão nada, somem uns e terão tudo, é que nos ensina a lógica; mas se ainda somarmos zeros com uns teremos outros tudos, tanto quanto. Então o talvez seja a resposta. Talvez seja, talvez não seja. Que amontoado de conjecturas estúpidas eu dei de escrever agora... Ah, mas são apenas passatempos mentais que crio para me distrair na ultima cela do corredor da morte. Palavras cruzadas, se bem posso dizer.

Pedi que bebesse comigo, mas ela não podia, por ordem do médico. Pediu-me comprimidos, sentia dores que não tinha, e eu recusei. Ela tinha medo de morrer louca, mas enlouqueceu e me matou, com a mesma faca que usava para descascar cebolas sem chorar. Eu sabia que um dia ela iria me trair, mas mesmo quando ela foi embora, alegando que eu tinha tentado lhe matar, levando consigo, eu sabia que ela iria voltar, pois como dizem nos livros policiais, o criminoso sempre volta à cena do crime. E ela voltou. Precisava consumar o que não tinha antes.  Esperei seu retorno, atrás da porta escondido. Sabia que chegaria na madrugada, sorrateira e bêbada, mas o que entrou foi apenas uma sombra, nada que de fato se parecesse com ela. Era arcada e doente, e mesmo assim pedi que bebesse comigo. Ela recusou novamente e eu, mais uma vez, recusei a lhe dar o remédio que pedia. E ela novamente me matou, e depois espalhou meus pedaços pelos cantos, como se fossem iscas para apanhar ratos.

Assumo perante todos que estou morto, plenamente, do mesmo jeito que assumi perante o mundo minha existência. E presumo de todos que jamais serão capazes de subir num palanque e gritar, ou mesmo pegar um pedaço de papel e escrever: "Eu Estou Morto", em letras de forma vermelhas. Seria deveras mais fácil que comprassem uma corda ou um pacote de veneno de ratos e acabassem de vez com aquilo que chamam de "vida de merda", numa declaração completa de independência, tanto das igrejas quanto dos governos. O mais puro e absoluto estado de anarquia. Quanto a mim, ao me declarar morto, trato além da independência e da anarquia, de provocar, pois nada pode incomodar mais aos vivos que um morto no meio de uma sala de estar, jantando na mesa, andando no mesmo ônibus e escrevendo que está morto, quando querem que não esteja.

Pense em um sujeito, como em um episódio de "Além da Imaginação", que celebra um pacto de imortalidade em troca da alma. Depois de algum tempo, enfastiado, procura acabar com sua existência tentando, sem sucesso, o suicídio. Em sua ultima atitude de desespero, assume-se como homicida da morte acidental da esposa, na esperança de que, condenado à cadeira elétrica, possa enfim morrer, mas a justiça decide que ele será condenado à prisão perpétua. Tal forma de penalidade, que seria uma dádiva a qualquer ser humano normal, torna-se a ele um pesadelo maior que a morte. Sua única saída é apelar a uma clausula que, enfim, entregaria sua alma ao signatário do contrato: o próprio Diabo. 

Calendários se sucederão nas paredes, e as modelos estão cada dia mais velhas, até que morrerão, e serão trocadas por mulheres cada vez mais nuas. Tudo se renovará, tudo será trocado, substituído. Imagine esse sujeito, de todas as formas, tentando acabar com sua existência dentro de uma cela, com cordas, fome e tudo o que puder encontrar, mas nada que possa, enfim, dar cabo da sua miserável e imortal existência.  Minutos lhe serão dias, anos, décadas, milênios; cada batimento cardíaco lhe parecerá o som mais odioso; carcereiros se sucederão, grades enferrujarão, paredes se esfacelarão. E tudo será refeito e reposto. 

Então, pense em outro sujeito, que sem nenhum pacto demoníaco, sem coragem de acabar seus dias, e que encara o tempo que resta, seja qual for, entre o agora e seu fim, como uma eternidade. Pense num sujeito que assume homicídios imaginários para ser condenado à morte e assim escapar de tortura que é existir, mas que é condenado a uma prisão perpétua. Sem nenhum contrato com uma cláusula que entregue ao outro signatário sua própria alma, pois que essa já foi, muito tempo antes, entregue. E não em troca da imortalidade, mas do mais mortal de todos os sentimentos: o amor.

Em minha escrita, especialmente no estilo que sempre foi minha paixão maior, a poesia, duas palavras e seus devidos sinônimos se sobressaem absurdamente: "morte" e "puta". E mesmo quando não são o mote principal do poema, elas sempre aparecem. Eu mesmo já me perguntei muitas vezes sobre o motivo desses assuntos terem tanta importância, a ponto de serem retratados na maior parte da minha poesia, muitas vezes em conjunto, e francamente não tenho a explicação. Desde meus primeiros poemas na adolescência, essas palavras já tinham grande proeminência. Ao contrário da época e idade propícias a temas amorosos, minha atenção poética é totalmente dedicada às possibilidades de prazer e de morrer. Com relação às putas, além do significado mais direto, eu entendi de ampliar seu conceito a tudo que envolve prostituição humana, ou seja, aos prazeres renegados, aos que se entregam aos desejos não pelo prazer sexual, mas por outros fatores, e toda sorte de servidão humana, mesmo que a involuntária. Já com a morte, sempre travei com ela uma luta titânica, possivelmente fruto de uma infância miserável, tanto no sentido financeiro como no moral, fruto da rejeição e violência com que convivia. Desde os primeiros momentos que recordo como nascimento da consciência, a eminência parda da morte se faz presente. Primeiro acreditei que morreria antes dos 18, depois aos 27, aos 33, antes dos 40... E agora aos sessenta ainda a sinto.

Tudo o que se acredita existe. Tenho usado essa frase em respeito aos religiosos em duvida de sua crença, ou mesmo sobre doenças aos hipocondríacos, mas poucos entendem que isso é de fato o que penso sobre o ato de ser considerado vivo. Não há vida quando não se acredita que ela, de fato, exista. 

Segundo a psiquiatria, todas as pessoas sonham quando dormem, mesmo que não conseguem se lembrar e ou relatar as histórias desses sonhos, e tenham a sensação de que não sonham. Já os idealistas falam sobre outro tipo de sonhos, aqueles ideais ou objetivos que estão apenas no campo da imaginação, mas sem qualquer possibilidade de realização. Chamam isso de "sonhar acordado". E ambos, psiquiatras e idealistas, convergem na mesma conclusão: apenas mortos não sonham. Afinal, uma das definições ateístas sobre a morte é simplesmente dormir sem sonhar. E, completo eu, não mais conseguir sonhar acordado.

A existência é o espaço, a morte é o tempo. Ou teoricamente ao inverso, no universo da relatividade. Não temos medo da morte, temos medo do tempo. Não existimos, apenas percorremos um espaço dentro do tempo. O tempo engolindo o espaço feito um "Buraco de Minhoca". E a filosofia, que não é ciência, apenas uma forma de marcar o espaço e percorrer o tempo.

Meu querido leitor ou leitora, mesmo eu dizendo que estou morto, não me pergunte como é o rosto da morte, não tive o gosto. Apareci em sua morada sem ser convidado, e na hora errada, segundo me disse. Estamos sentados ao redor de uma enorme mesa de jantar. Em meu prato não há comida, enquanto no seu, três cabeças humanas que devora em silêncio, sem erguer a cabeça. Tento olhar em seus olhos, que são tão profundos que não consigo enxergar. Pergunto sobre Deus e o Diabo e seus dedos longos e magros apontam a porta do banheiro. Seu silêncio talvez me diga que não sou bem-vindo, talvez seja. Quem sabe o que me diz o silêncio da morte? Insisto com perguntas. Quero saber do Inferno e do Céu, e um braço esticado com uma mão aberta me indica a única porta em todo o ambiente. Penso estar sonhando e quero acordar, mas sou seguro por uma mão firme. Tento me desvencilhar, me debato, e por fim desisto. Meu prato, enfim, tem um repasto, uma cabeça humana. Apenas uma. E nela reconheço meu próprio rosto.

Para além do bem e do mal deus está morto, e quem o matou foi quem o criou. Não existe o bem, não existe o mal, apenas o humano, demasiado humano, a natureza humana, acima do bem e acima do mal. E a natureza humana é composta pelo medo. O medo é o que conduz a humanidade, para além do bem e do mal: para as conquistas e para a destruição, para a origem das religiões e da política; para as doenças, para os crimes; para os desejos, e até mesmo para o amor. Alimentamo-nos de medo, do próprio e do alheio. O medo é o que nos dá força e o que nos derrota; o medo é o que nos impele contra a parede e nos joga dentro do fosso escuro, o medo é o que nos une e nos separa; o medo é que nos faz existir. E morrer. Não existe o bom, não existe o mau, existe o medo, apenas.  Não existe o certo e não existe o errado, não existe o sim nem o não, não existe sequer o talvez e o quem sabe, apenas o medo. E o medo é a morte. Morte é o medo.

Dias atrás liguei a meus pais: disseram que não conheciam ninguém com meu nome; liguei a meus filhos, que disseram que seu pai era um desconhecido; depois telefonei a meu irmão, que disse ser filho único; tentei abraçar minha mulher, mas ela não retribuiu; escrevi a vários amigos que não responderam; meu perfil no Facebook sumiu, meu Whatsapp não tem foto; procurei por fotos antigas minhas e não as encontrei; e quando olho no espelho vejo alguém que não reconheço. Na banca de jornal nenhuma noticia sobre mim, na televisão nenhum programa sobre meu ultimo livro, na Internet nenhuma entrevista sobre minha poesia. Quando me toco é como se tocasse algo inerte, plástico, e quando ando parece que nunca estou indo a lugar nenhum, e meus pés parecem que não pisam em nada. Digo bom dia e ninguém responde, digo olá, alô e oi, e não ouço resposta. Olho para cima e tudo me parece tão grande, e olho para baixo e não vejo nada.

Por fim, prometi aos senhores e senhoras, leitores e leitoras, que faria um relato póstumo, que contaria sobre os pensamentos e sentimentos de um morto. E estou plenamente certo de que não os enganei, estou certo de que o fiz.

05/03/2019

02/03/2019

Araras de Araraquara

Araras de Araraquara

Cantos de galos parecem pedidos de socorro. Piados de pássaros piadas sem gosto. Riem de que? Riem de mim. Queria estar no exterior, estou no interior. De mim. Só deserto. Só, decerto. Araras de Araraquara. Galhos secos, ruínas de locomotivas. Trilhos enferrujados.  Há motivos. Vivos. Tocas ocas. Tijolos de barro. Um ninho de pássaro no meio dos fios de eletricidade. O filhote caiu do ninho. Ainda não sabia voar. É tudo tão distante. O futuro é tão perto que até posso tocar. Tão perto e não chega nunca. O tempo é tão curto que até posso enxergar. Atrás das lentes embaçadas dos meus óculos de sol. Morada do sol. Namorada. Amada. Que gosto de estranho tem a fome. Tem nome? E sobrenome? Ela dorme. Sono forçado. Eu não durmo. Nem à força. Então torça. Por mim. Não força. Força e luz. Não tenho amigos. Estão todos na Internet com outros amigos. Meus pés estão adormecidos.  Meus dedos estão gastos. Minha cabeça que martela um prego enferrujado numa parede podre de uma casa sem telhado. Caminho até a rua. Goiabeiras e amoreiras. As frutas estão podres. Vagões apodrecem na chuva. O mato toma conta da locomotiva que parece louca e viva no sol quente. Meu tempo parece curto quanto a minissaia da putinha da estação onde passa um trem de carga rumo a algum lugar que não conheço. E não esqueço o quanto perdi. Sem apreço por nada. Nem ninguém. Só queria ser alguém. Minhas gatas na janela olham a alguma coisa que não entendo. Só pretendo dormir. Amanhã.

02/03/2019

19/10/2018

Somos Todos Pessoas

Somos Todos Pessoas
(Editorial Para Uma Revista Abortada)
Museu Ferroviário de Araraquara, Foto: Barata Cichetto

Somos todos pessoas. Pessoas de bem, pessoas de mal, de açúcar, e de sal. Somos todos pessoas, fernandos ou orlandos, cidadãos comuns ou sem uns. Pessoas sem pessoas, pessoas de muitas pessoas, pessoas de ninguém, pessoas de alguém. Somos todos pessoas, poetas, profetas, paulos e saulos; marcos e pedros; jucas e lucas. Somos pessoas sem eira, pessoas sem beira. Somos todos pessoas, e pessoas são fatos. Pessoas são natas, daqui ou dali; pessoas de Araraquara, de São Carlos, de São Paulo. Somos pessoas, escritoras, cantoras; encantadoras e desencantadas. Somos pessoas feito Pessoa, que não querem nada, e pessoas que querem tudo. Pessoas que correm, que morrem, pessoas que socorrem; pessoas culpadas, pessoas inocentes. pessoas decentes, pessoas carentes; pessoas anãs, pessoas sãs, pessoas pagãs, pessoas crentes, pessoas doentes. Somos ciros, epitácios, estácios e inácios. Somos josés, saramagos, magos e bruxos; luizes e Camões; gagos, juízes e anões; antônios e joões. Somos todos pessoas. Augustos e Anjos, demônios e arcanjos. Somos pessoas com medos, com segredos; pessoas que acordam cedo, pessoas que não dormem, pessoas que não comem; pessoas com nomes, sem sobrenomes. Somos todos pessoas, simples ou complexas, côncavas ou convexas. Somos pessoas a toas, pessoas boas; pessoas más; mas somos pessoas, e pessoas são pessoas, apenas pessoas, e nada mais; pessoas normais, anormais; ademais, pessoas, outras jamais. Somos todos pessoas, doces e brutas, santas e putas; pessoas engraçadas, e desgraçadas; somos pessoas do sim, e pessoas do não. Somos todos pessoas, pessoas que são filhas, pessoas que são pais; pessoas que são filhos, pessoas que são mães. Somos joanas e anas, mários e marias, fernandas e amandas. Somos pessoas, que caminham e que param, que andam e mandam; pessoas que comandam. Somos franciscos e chicos, ricos e fredericos. Pessoas sem dinheiro, pessoas que devem, pessoas que recebem; pessoas que pagam, pessoas que pegam, que enxergam, que cegam; que negam, e que renegam. Somos todos pessoas, e pessoas são o inferno de outras pessoas. Somos todos pessoas más, mas algumas pessoas são mais más que outras pessoas más. Somos pessoas pessoais, sociais, antissociais. Somos todos pessoas, de peles escuras, e de peles claras; pessoas coloridas, pessoas doloridas, de qualquer cor; de fraldas ou de andador. Somos todos pessoas, que fazem poemas, que trazem problemas, que criam sistemas. Pessoas como quaisquer pessoas, que se prezam, que rezam, que se enfezam; pessoas que se atrasam, que chegam antes da hora. Somos todos pessoas; cristinas, marisas, marinas; faladoras e fingidoras; albertos e caeiros, covardes e guerreiros. Somos todos pessoas; pessoas das cidades e dos campos, álvaros, augustos e cids, humbertos e eduardos. Somos todos pessoas, somos quaisquer pessoas; de Portugal, do Brasil, de Moçambique; quaisquer pessoas, que falem português, que cantem em inglês, ou que façam poesia em chinês. Somos pessoas, que fazem versos, que criam universos, que fazem inversos, e causem inversões. Somos pessoas, diferentes versões, subversões. Somos pessoas; subversivas, vivas. E apenas quando somos pessoas mortas, deixamos de ser pessoas.
Barata Cichetto, Araraquara, 26/09/2018
Publicado Originalmente em 27/09/2018, em: http://www.abarata.com.br/revistapessoasararaquara/

13/08/2018

A Lira dos Sessenta Anos

A Lira dos Sessenta Anos
Barata Cichetto

Ah, então o poeta fugiu ontem a noite da escola
E sua mão direita insurgiu fingindo uma esmola
Ah, seria esse o poeta que fingiu ser o mentiroso
Ou seria qualquer pessoa a fingir ser incestuoso?

Ah, e então ele, aquele poeta que tinha verdades
Sucumbiu pelos prados, em procura das vontades
E despencou pelas rochas com alma de prostituta
Ou seria na sua fé, pelo vinho em que transmuta?

Oh, pois então é ele, o poeta que pulou o abismo
E das profundas chamou a todos por seu cinismo
Seria ele, este homem de verve tão maligna e pura
A solfejar palavras contra o véu de uma ditadura?

Oh, e se não há o poeta que possa tatuar no rosto
Que haja o que houver, que imprima seu desgosto
Há rigor no traje do político, e frangos no quintal
Ou seria o rigor da morte, mesmo que seja brutal?

O pasto tem cheiro de merda de vaca, há risco no ar
E eu, arisco feito frango, alguém há de me consolar
Acendo um cigarro, a fumaça sai pela janela da sala
E se há risco de incêndio, quem ainda que me cala?

O poeta foi aquele que a fodeu no meio do mato
Não aquele que foi feito de rato, de gato e sapato
Se não fosse ele as tuas entranhas seriam imundas
E o que seria dele, não fossem outras vagabundas?

Tem tanta poesia dentro dos próximos sessenta anos
Que o poeta deseja rabiscar no caderno seus planos
E se essa lira sem vergonha não terminar sem o fim
O que fará o poeta, longe das asas de corvo carmim?

Há na minha lira palavras sem algum sentimento
E eu as trocaria por tijolos e por sacos de cimento
Pois se não morre o poeta, por seu veneno sem sal
Por que não renascer como a vingança do seu mal?

11/08/2018