A Condição do Escritor, no Incômodo Limite Entre o Ser e o Estar
Luiz Carlos Barata Cichetto
"Civilização! Você alardeia isso como a maior conquista do Homem! Não é nada, apenas uma consequência da fraqueza humana! O Homem é frágil demais, uma criatura indigna demais para viver em seu próprio meio. Ele precisa, como alternativa, se escorar em sua civilização, seu aprendizado. Minha raça aprendeu a viver no mundo real, a se fundir com o meio. Não precisamos de civilização. O Homem é um aleijado que ostenta sua enfermidade, orgulha-se de suas muletas. Vocês fogem para trás das muralhas de sua civilização porque vocês são fracos demais para colocarem-se diante da natureza como parte do ambiente natural. Ao invés de viver como um parceiro da natureza, o Homem se esconde atrás da civilização, amaldiçoa e desafia a vida de verdade, distorce seu meio para acomodar os próprios defeitos. Tome cuidado para que o seu meio não contra-ataque por conta de todas as suas blasfêmias, pois nesse dia a humanidade será extinta como a aberração que o Homem é!" - Gigante Dwassllir discutindo com Kane em Two Suns Setting, de Karl Edward Wagner.
Por aquelas estranhas coincidências, que muitos chamam de sincronicidade, dois textos caíram sob meus olhos e me impressionaram nos últimos dias. O primeiro, acima, colocado na boca de uma personagem de um livro de fantasia chegou depois, quando eu ainda pensava sobre um outro que muito tinha me impressionado, e que continha a seguinte declaração: "Na realidade, é difícil saber o que o escritor criativo realmente pensa, pois ele se esconde atrás de suas cenas e de seus personagens. E quando os personagens começam a pensar e a expressar seus pensamentos, não se trata, necessariamente, dos pensamentos do escritor." Essas palavras são de Anthony Burgess, no célebre artigo publicado em 1973, denominado "A condição humana, no incômodo limite entre o bem e o mal". O artigo é fantástico, mas o texto acima, a mim demonstra que o autor de "Laranja Mecânica" estava errado nesse ponto. Está claro aqui que o autor Karl Edward Wagner colocou deliberadamente seu pensamento mais intimo e intenso na boca de uma personagem, o gigante Dwassllir. E ai ainda sustento isso, com uma alegação da qual sou partidário que todo autor, mesmo o de ficção é autobiográfico, ou seja sempre coloca disfarçadamente ou não pedaços de seu pensamento na boca de personagens. É uma analise extensa, mas acredito que talvez um autor de ficção seja meio covarde ou comodista para expor suas idéias através de outras formas, como o ensaio, a crônica, ou mesmo a poesia e o faça usando personagens como escudos. E afinal, um Homem criou e alimenta um monstro chamado Civilização e precisa dentro dela criar e alimentar outros pequenos monstros. Como os escritores de ficção.
Logo no primeiro parágrafo, Burgess escreve: "Sou, por ofício, um romancista. Acredito tratar-se de um ofício inofensivo, ainda que não venha a ser considerado respeitável por alguns. Romancistas colocam palavras vulgares na boca de seus personagens e os descrevem fornicando e fazendo necessidades. Além disso, não é um ofício útil, como o de um carpinteiro ou de um confeiteiro." Durante parágrafos adiante, o autor sugere que as palavras de romancistas não devem ser levadas a sério "Nenhum criador de enredos ou personagens, por maior que seja, deve ser considerado um pensador sério, nem mesmo Shakespeare", arrematando o pensamento. Decerto que há de se separar bem as coisas e retirar dos romances e das novelas, das obras de ficção enfim o que é pensamento e o que é simplesmente passatempo. Em outras palavras, o que é "sério" do que é "divertimento", seguindo o autor que até hoje é citado como autor que, em contraponto às idéias de outros pensadores e mesmo romancistas, acaba por colocar que o ser humano precisa de seu livre arbítrio intacto para que, mesmo com o risco desenvolver a "maldade", possa por outro lado desenvolver a "bondade". As torturas impostas a e por Alex, narradas por esse cristão, pouco tem de fato de romance, embora no filme a característica de "historinha" esteja bem caracterizada. O livro, aliás lançado há cinquenta anos, em 1962 quando o mundo vivia ainda sob a euforia da reconstrução mundial pós Segunda Guerra Mundial e começava a dar passos em direção á Era da Paz e do Amor, fruto desse mesmo trauma, é sem dúvida um retrato fiel do pensamento de seu autor, disfarçado. E não há demérito nenhum nisso. Demérito há, sim, no citado artigo, quando ele tenta diminuir o valor do pensamento de um romancista de forma geral.
Claro que existem casos e casos e talvez, ao tentar apontar o dedo usando a si próprio como alvo, ele na verdade queira atingir a escritores que realmente não devam ser levados a sério. Provavelmente ele tenha usado a analise inversa que é utilizada quando se afirma que quando apontamos o dedo a alguém existam outros três apontados a nós mesmos. É possível que ele tenha de propósito ou casualmente deixado apontado os três dedos a si mesmo querendo atingir um alvo maior que eram os outros. Autores de "best sellers" normalmente se enquadrariam naquilo que Burgess afirma, mas acredito ainda que mesmo nestes, existe ainda o pensamento de seus autores. São importantes e devem ser ou não levados a sério? Acho pretensão demais, mesmo para um autor como ele tentar responder essa pergunta, pois estaríamos nesse ponto colocando numa única vala, comum e fedorenta, todos os escritores. Se milhões de leitores acham o máximo do pensamento escamoteado sob mantos e bocas de bruxas e seres imaginários, de um autor medíocre como Paulo Coelho, expressos em romances simples e até mal escritos, por exemplo, qual é o erro?
O esperto romancista nunca afirma que ali existe o seu pensamento, mas o leitor é sempre induzido a pensar que é. Mas a imensa maioria dos leitores sabe disso no seu intimo e tanto que é comum citarem frases atribuídas a personagens de livros como sendo pensamentos de seu autor. Principalmente o leitor mais contumaz conhece isso muito bem, mas no momento da leitura abstrai o pensamento e imagina o pensamento com a voz, a roupa e a personalidade da personagem. Mas ele sabe disso, sabe da verdade. E o autor mais astuto também. É um belo truque literário, pois desta forma, se o pensamento for "correto" será atribuído ao autor, se não é lembrado como da personagem... Ou completamente esquecido. Também dessa forma, o autor se livra de responsabilidades de toda ordem e não se compromete com nada, pois afinal não é ele quem pensa ou diz ou faz determinadas coisas, mas as suas criações. E assim, todos vivem felizes para sempre. Como nos romances.
Há também que se levar em conta o fato que nem todos os escritores são jornalistas. Estes, quando se tornam escritores, por força do oficio tendem a exagerar no fato e não no pensamento. E mesmo num romance tendem a se colocar como retratistas e não como pensadores. Induzidos pelas engessadas regras ditadas séculos a fio pelas redações de jornais, o jornalista-escritor normalmente mantém o foco sobre fatos e mesmo quando expõe idéias, normalmente não são suas mesmo. Não que, absolutamente, um jornalista não tenha idéias próprias, que seja um autômato que apenas repete o que vê, lê ou escuta, mas na maioria das vezes ele, inconscientemente, se deixa levar pelo sistema que limita o fato em si e a imagem dele, em detrimento do pensamento. Do mesmo jeito que um médico ao exercer o ofício de escritor, fatalmente irá privilegiar os fatores biológicos por trás de uma doença e não os fatores sociológicos e psicológicos que a geraram. Mas não quero de forma alguma estabelecer regras de leitura, nem muito menos estabelecer padrões de escritores. Claro que um jornalista ou um médico podem ser fantásticos escritores, desde que se livrem de seus estigmas, mas mesmo que não façam ainda podem ser ótimos, se assim seu publico o aceitar.
E quem conhece o caminho correto das mentes dos leitores? Há uns dias atrás, quando participei de uma oficina com o jornalista e escritor Paulo Markun, este contou a história de um livro que tinha sido encomendado a uma figura publica que não era escritor, ligado á área de esportes. A primeira versão, segundo o editor estava "mal escrita". Foi sugerida a "ajuda" de um "profissional" que reescreveu o livro, versão com a qual o autor original não concordou. O editor então lhe deu liberdade para alterar o livro, que segundo avaliações iniciais teria ficado pior que a primeira versão. Resultado: esta ultima versão vendeu absurdos. Cito este fato pelo mesmo ter me deixado com uma pulga gigante atrás das (duas) orelhas, me fazendo pensar sobre o que é realmente bom para o leitor mediano e principalmente imaginar o quanto o escritor, em seu trono realmente é tido como rei pelo leitor. Até que ponto um livro tido como "bem escrito" por um editor é mesmo bom ao seu eventual comprador? E até que ponto o contrário ocorre?
Nos tempos correntes, onde nascem mais escritores que crianças, onde brotam mais poetas nos jardins do que grama, temos que pensar sobre essas questões. Estamos quase que escrevendo uns para os outros e os que ficam de fora disso é porque não se enquadram nem em uma categoria, a dos escritores, como na outra, a dos leitores. E então, retornamos ao ponto inicial deste artigo, que é sobre até que ponto pode ser avaliado o pensamento expresso em um romance, na boca de um personagem, como sendo o do autor. O que existe de fato na literatura atual não seja talvez o excesso de pensamento de autor disfarçado e seja isso a razão pela qual todos se sentem no direito, e até mesmo no dever, de se proclamarem escritores?
Acredito que aí estejam nossas respostas a essa questão. Um escritor genial sabe separar seu próprio pensar do personagem e consegue até mesmo construir pensamentos contrários aos seus no intuito de melhor construir uma história. E o faz com tanta maestria e precisão que seu leitor saberá distinguir uma coisa da outra. Seus personagens, desta forma, se tornarão vivos e independentes, livres do seu criador que também não se tornará prisioneiro da criação, deixando principalmente o leitor livre para seus próprios pensamentos e interpretações. Esta a meu ver é o que faz a diferença entre o genial e medíocre, pois este na ânsia de expor seu pensamento, mas sem a coragem de fazê-lo de outra forma, constrói personagens "a sua imagem e semelhança", aprisionando um dentro do outro e fazendo o pior, que é manter preso o leitor dentro de um espelho que ele jamais teria coragem de encarar. Enfim, toda obra é autobiográfica, no sentido de que seu autor impõe a ela componentes de sua existência, mas como fazer isso sem transformar um romance num desfile de egocentrismo é o que separa o gênio do embusteiro.
Leia Também o Texto de Anthony Burgess na Íntegra, em Português:
http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,a-condicao-humana-no-incomodo-limite-entre-o-bem-e-o-mal,958141,0.htm
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