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07/05/2018

A Incrível e Triste História de Renato Fênix e Sua Mãe Desalmada

A Incrível e Triste História de Renato Fênix e Sua Mãe Desalmada
Luiz Carlos Cichetto

Meu nome é Renato. Conhecido como Renato Fênix. Renato significa "renascido". E Fênix, tal o pássaro que renasceu após ser queimado. E essa é a razão pelo qual tenho tal sobrenome.

Minha mãe me concebeu quando tinha apenas dezesseis anos. Foi expulsa de casa após ser espancada pelo pai, e foi para as ruas. Mesmo grávida, se prostituiu até os sete meses de gravidez. Aí ninguém queria mais, e nós dois passamos fome, pelas ruas, comendo apenas quando alguém tinha algum ato de caridade.

Perambulamos pelas ruas geladas do centro de São Paulo até que ela sentiu as dores de parto numa rua sem saída próxima a uma delegacia. E ali, entre montes de coisas que as pessoas não precisam ou não querem mais, entre pedaços de papel higiênico sujos de merda e latas de cerveja vazias, eu nasci. 
Minha mãe aguentou as dores sozinha, sem nenhum filho da puta para lhe segurar a mão, sem nenhum médico a lhe dar algo para aliviar a dor. Nada. Estávamos sozinhos. E minha mãe chorou quando eu nasci. Não era de alegria. Era tristeza, angustia e medo. Sentimentos que as mães têm quando nascem seus filhos. 

Ela sabia que eu não podia existir. E pensou em resistir. Mas desistiu. Me enrolou num monte de jornais e revistas velhas que estavam espalhadas pelo chão para que eu não morresse de frio, e sem derramar lágrimas, levantou-se e cambaleou para longe daquele lugar sem olhar para trás.

Perto dali, um grupo de mendigos bebia cachaça e procurava um lugar onde pudesse se aquecer. Encontraram a viela e aquele monte de papéis. Atearam fogo e se sentiram quentes e aconchegados até começarem a escutar um choro intenso que vinha do meio do fogo. Alguns correram assustados, mas um casal, que aproveitava a caloria do fogo para transar ficou para trás, e a mulher, uma loira desdentada e quase cega, gritou para que o homem moreno e sem dentes, descobrisse o que era aquilo.

E aquilo era eu. Quase morto, queimado. 

Com medo de acharem que poderiam ser incriminados como autores do crime e com certa pena, me levaram a um prostíbulo que tinha nas proximidades e me deixaram nos braços de um homem que saia de lá, ainda arrumando as calças. Sem perceber e sem tempo de recusar, o homem ficou parado ali, com um pedaço de menos de três quilos de carne queimada nos braços.
E assim eu comecei a existir nesse mundo. 

Sou quase um monstro, por conta daquelas queimaduras. Tenho toda a pele do corpo avermelhada e lisa, nenhum pelo jamais nasceu em mim. Sequer cílios ou sobrancelhas. Meus olhos são sempre vermelhos e quase não tenho nariz, possivelmente por ter inalado muito fogo, e meus lábios são retorcidos e deformados. Os dentes de leite nunca caíram, então são muito pequenos para um adulto. As unhas são podres e nunca preciso cortar. Meu pênis é minúsculo, torto, mas está sempre ereto. Se é que podem chamar de ereção aquilo. 

Por conta de tantos atributos físicos, não preciso dizer que não suporto a luz do dia, e mesmo à noite, ainda preciso usar óculos escuros para sair. Até a luz da Lua me faz sentir dor ao penetrar pelos meus olhos. Além do mais, como seria eu andar pelas ruas com essa aparência?. As crianças iriam se assustar, e não quero assustar crianças, que já tem motivos de sobra nesse mundo para crescerem assustadas. Muito menos quero chocar as pessoas que desfilam por aí, com seus cabelos longos, pintados de todas as cores, e as mulheres com cílios enormes e sobrancelhas desenhadas. Não quero assustar os homens que bolinam seus pênis quando veem uma mulher com as pernas nuas, não quero assustar essas mesmas mulheres que adoram ser cortejadas por homens trajados com esses ternos bem cortados e sapatos de bico fino. Eu não posso usar essas coisas, a roupa que eu uso é sempre apenas uma calça e uma camiseta muito largas. E nenhum sapato cabe em meus pés deformados. À parte tão pouca roupa, nunca sinto frio. Deve ser por que todos os sensores de temperatura desapareceram quando fui queimado.

Passei vinte e poucos anos trancado dentro de um porão, cuidado por aquele homem que, não por vontade, mas por algum instinto estranho, de piedade ou de culpa, ficou comigo naquela noite. Talvez por se considerar culpado por estar traindo a esposa num puteiro, me levou para sua casa, e me escondeu durante todo esse tempo no porão. Diariamente me levava comida e água, e me ensinou a falar. Era sempre escuro o porão, mas eu nem sabia o que era luz, portanto não sentia falta dela.

Um dia... (Ah, sim, eu não sabia o que era isso, de dia ou noite, fui descobrir bem depois que o tempo era dividido em duas partes, e que, aliás, tudo no mundo era dividido em dois, mas isso demorou um pouco.) Um dia ele não veio. Nem no outro. Nem nos outros que se seguiram. Eu não sabia o que sentia, mas era fome. E sede. E instintivamente procurei um jeito de sair dali. Na casa, em cima do porão, não havia ninguém. Apenas objetos bonitos, móveis, coisas assim. 

Na rua, a claridade me deixava cego. Precisei cobrir os olhos com o braço. E andei. Sei lá quanto tempo andei. Não sabia o que era tempo, nem relógio, nem horas. Nem sabia o que era noite ou dia. Apenas andei.

Precisava comer. Peguei umas coisas numa barraca. Chegou um carro. Tinha uns homens usando a mesma roupa que o Homem Que Cuidava de Mim usava. Então pensei que estaria bem. Mas me enganei. Eles chegaram perto de mim, eram dois, e um tapou o nariz e me pediu documentos. Eu não sabia o que era isso. Portanto não tinha. Ele perguntou meu nome. Eu disse Renato Fênix. Ele quis saber o nome da minha mãe. Eu não sabia o nome dela. E do meu pai. Eu não sabia o que era isso. O outro perguntou meu endereço. Eu não sabia. Todas as perguntas que fazia eu não sabia a resposta. Creio que foi por não saber respostas que me colocaram algemas e me enfiaram naquele carro.

Chegamos à delegacia. Ali, todos me olhavam com cara de nojo e piedade, o que deve ser a mesma coisa. Acho. Então o tal delegado me perguntou todas as coisas que eu não sabia a resposta. E me trancou numa cadeia. Tinha outras pessoas ali e eles me bateram muito. Então foi que percebi que eu não senti nenhuma dor. 

Fiquei muito tempo ali. Eles não sabiam as respostas que eu também não sabia. Mas eram eles que faziam as perguntas. Não eu. Eu não me interessava por nenhuma daquelas perguntas. Me deixaram sair, possivelmente porque minha aparência lhes causava medo e culpa. O que é provavelmente a mesma coisa. Eu sai. Eles ficaram. Eu fui embora dali sem lhes dar respostas, e eles ficaram com suas perguntas. Os presos ficaram com meu cheiro. Eu não sentia o cheiro deles, nem o meu. Eles pegaram um pouco do meu sangue, mas eu também peguei o deles.

Eu ainda tinha fome, nem sabia que o que era isso, mas sentia que precisava comer. Na cadeia tinham me dado comida. Eu comia. Alguns reclamava do gosto disso ou daquilo, mas eu não, eu não sentia gosto de nada em comida nenhuma. Para mim, todas eram boas, ou ruins, sei lá. Aliás, eu acho que eu nem sabia o que era isso de ser bom ou ruim. Apenas comia.

Andei bastante. Muito. Não queria parar. Não sabia para onde ir, mas queria andar. Não tinha um destino e nem um motivo. E quando à gente não sabe essas coisas, a gente simplesmente anda. E anda mais rápido.

Eu não sentia nada, nem dor, nem cansaço, nem raiva, nem amor. Nada. Essas coisas, que o Homem Que Cuidava de Mim me dizia que eram sentimentos humanos. Ele dizia também que os sentimentos humanos eram assim, extremos. Que tudo tinha dois lados, um bom e outro ruim. Que as pessoas fora daquele porão onde eu sempre vivi, todas elas iriam me machucar de algum jeito. Que todos me olhariam com um desses extremos. Ou me olhariam com piedade, ou com desprezo; que me olhariam com nojo ou com desejo; que me olhariam com medo ou com esperança... Coisas assim. E por isso, eu nunca deveria deixar aquele porão. Ele dizia que nunca ninguém me olharia como igual, como ser humano, e que para todos eu seria apenas uma aberração, um monstro. Que as crianças teriam medo, que os idosos teriam nojo. E que todos, indistintamente me olhariam com desprezo.

Andei. Andei. Andei. Até que cheguei em frente a um pequeno prédio, de quatro andares, muito antigo, sujo e com pedaços despencando, janelas quebradas e portas podres. Homens entravam e saiam do lugar, arrumando as calças, e várias mulheres nas janelas, chamando os que passavam na calçada.

Não sei por que, mas parei em frente e fiquei olhando para cima. Era noite de algum dia, de algum tempo que não sei dizer quando. Eu desviava meu olhar da Lua que refletia nas janelas daquele prédio, até que percebi, numa delas uma mulher, que olhava em minha direção. Não sei qual a razão, mas eu tinha a certeza que ela me reconhecia. Não era possível, pois eu nunca tinha saído daquele porão, e nunca tinha recebido nenhuma visita. A única pessoa que eu tinha visto durante toda a existência era o Homem Que Cuidava de Mim.

De repente, a mulher desapareceu da janela e eu, instintivamente olhei para a porta do prédio, como que esperando que ela descesse e saísse por ela. De onde eu tinha tirado tal ideia? Por que motivos ela faria isso? 

Eu nunca tinha chegado perto de uma mulher, nunca tinha tocado uma mulher, mas algo ali mexeu comigo e provocou coisas que eu nunca tinha sentido. Aliás, falar em coisas que eu senti é um tanto estranho para mim. Eu nunca senti dor, nem frio, nem calor, nem medo, nenhuma dessas coisas. A única que lembro de sentir era fome.

A mulher apareceu na porta do prédio e foi se aproximando de mim, com o olhar fixo, como se me conhecesse há muito tempo. E eu fiquei ali, parado, esperando que ela chegasse mais perto, possivelmente pelo mesmo motivo. Não sei, era tudo muito confuso aquilo.

Num dado momento, vi lágrimas descendo pelo rosto da mulher. Ela parecia estar daquele jeito que O Homem Que Cuidava de Mim sempre dizia estar: triste. Mas ao mesmo tempo seus olhos me diziam alguma coisa, algum tipo parecido com o que se chamava de felicidade. Era tudo muito estranho.

Quando chegou ao meu lado, a mulher abriu os braços, me abraçou, e começou a chorar e soluçar. Ela me chamou de filho e disse que esperara durante mais de vinte anos, mas sabia que um dia me encontraria. Chorava e pedia desculpas. Chorava e passava as mãos sobre meu rosto. Chorava e beijava minhas mãos. E eu ali, sem saber o que era nada daquilo, apenas me mantinha junto dela.

Eu, de fato, não sentia nada, mas pela história que O Homem Que Cuidava de Mim contara várias vezes, sobre como eu tinha sido entregue a ele, deduzi mesmo que aquela mulher fosse minha mãe, sem entender de que forma ela tinha me reconhecido.

Depois de algum tempo, não tenho ideia de quanto, a mulher parou de chorar, me beijar e abraçar, e me perguntou o nome, e eu lhe disse que era Renato Fênix, que era assim como O Homem Que Cuidava de Mim me chamava. E repeti-lhe a explicação que ele me dera, desse "Fênix". Ela chorou um tanto a mais, e me perguntou se eu a perdoava. Eu não sabia o que era isso, mas lhe disse que sim. Ela me disse que me amava, e eu, mesmo sem saber o que era isso, lhe disse que também. Ela me perguntou se eu sabia quem eu era, e mesmo sem saber, respondi-lhe que sim.

Eu não sabia, mas eu era. E mesmo sem saber de nada, apenas continuei a ser.

Ela retornou para dentro do prédio e eu continuei caminhando, sem saber.

04/05/2018

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