(Reflexões Sobre o"Dia da Consciência Negra")
Barata Cichetto
Eu queria apenas desenhar, pintar o mundo com todas as suas cores. Fui a uma papelaria e comprei uma caixa de lápis de cor, com uma dúzia. Doze cores seriam o suficiente para eu expressar minhas emoções, dar vazão à minha criatividade, expressar minha arte. Deixar ao menos um pedaço de papel colorido, que fosse sobre alguma mesa de plástico, ou numa rua de asfalto.
Cheguei em casa, desembrulhei o pacote, abri a caixa e fiquei olhando para os lápis redondos, coloridos, todos do mesmo tamanho, alinhados elegantemente dentro da caixa de papelão, e pensando sobre as maravilhas coloridas que faria com eles, e que poderiam encantar crianças, idosos, e dar-lhes um pouco de cor.
Aí me lembrei do mundo chato e intolerante, e fui logo tirando da caixa o preto, já que eu poderia pintar algo com ele e ser acusado de racismo. Por via das dúvidas, e pelo mesmo motivo, joguei fora também o marrom. Ficaram apenas dez lápis na caixa, mas era o suficiente para eu pintar o mundo.
Então percebi que tinha que jogar fora também o bege, pois eu poderia também ser tachado de racista, acaso me distraísse e pintasse uma pessoa com essa cor. Por aproximação, foi também o rosa, que tinha o agravante de que eu poderia ser acusado de machista ao pintar alguma coisa feminina com ele.
Ah, mas eu ainda tinha oito lindos lápis de cor, que comprara simplesmente para fazer arte, e quem sabe dar alegria a algumas pessoas, ou no mínimo me expressar, colocar em cores meus sentimentos mais bonitos.
Oito... Mas tinha o verde escuro e o amarelo, e pensei que seria condenado como fascista se pintasse algo com eles, já que são as cores da bandeira brasileira.
Sobraram seis, só a metade do que comprei. Apenas metade das cores que eu poderia usar para pintar e descrever o mundo. Ainda acreditei que seria o suficiente, já que o mundo não anda tão colorido atualmente.
Eu disse seis? Não, tinha o outro tom de verde mais claro e o azul, que também foram descartados pelo mesmo motivo. Resolvi, para evitar maiores problemas, juntar a eles também o azul mais escuro.
Olhei para a caixa de lápis de cor quase vazia, onde jaziam apenas três lápis: o lilás, o vermelho e o laranja.
O vermelho foi logo quebrado e atirado no lixo, que poderiam me chamar de comunista, caso eu pintasse alguma coisa com ele. Por inércia a próxima vitima foi o laranja, e por fim o lilás, que poderia sugerir alguma espécie de homofobia, ou o oposto, alguma apologia à imoralidade.
Cores e palavras são coisas que nasceram para representar a liberdade, algo um tanto perigoso nos últimos tempos.
Olhei para a caixa de lápis vazia com uma enorme tristeza, já que não poderia mais colorir nada desse mundo. Não havia mais cores, apenas uma caixa vazia de lápis de cor. Amassei e joguei a inútil embalagem no lixo, depois voltei à papelaria e comprei apenas um lápis, da única cor que eu poderia pintar este mundo: um lápis cinza.
Mas era tarde demais, eu não queria mais pintar.
18/11/2019
©Luiz Carlos Cichetto - Direitos Autorais Reservados
Texto e vídeo soberbos, Barata!
ResponderExcluirCerta vez eu estava pensando a respeito dessa questão de cores. No mundo das ideias que nos chocam e se chocam à velocidade da informação, onde a desinformação e a ignorância chegam primeiro, uma singela cor pode determinar os limites das relacões pessoais como temos visto, e já é mais regra do exceção.
Convicções políticas, ideológicas, religiosas, comportamentais, sexuais, raciais, artísticas, e por aí vai, estão cada vez mais sinalizadas por cores, como bem explicitado no seu excelente vídeo. O pior de tudo é saber que nem o bege escapou (risos amarelos).
A minha cor preferida é o verde. E isso já é um segredo cada vez mais inconfessável.
Nenhuma cor escapa à sanha dos ditadores. Como se não fossem todos no final das contas, incolores.
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