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07/11/2012

A Ditadura da Imagem

A Ditadura da Imagem
Luiz Carlos Barata Cichetto

Ontem, quando publiquei uma crônica com o título "O Homem de Pés de Plástico", uma amiga de rede social a quem muito estimo, colocou nos comentários uma frase sobre uma imagem que tinha visto poucos dias antes e que agora, junto com minha crônica lhe despertava sentimentos. "Vi essa imagem na Internet... Entre a compaixão e a raiva, congelei numa fuga imediata, mandei as imagens para aquele compartimento secreto que todos temos dentro de nós. Esperei que a imagem se fosse por si, até ler sua crônica... Usei suas palavras e seus sentimentos para absorver a imagem. Não sei o quanto consegui, apenas o tempo dirá, mas pelo menos, no momento, consegui trazer a tona o exato momento em que 'travei'." A imagem que Joanna Franko, minha amiga virtual, dona de uma percepção e cultura muito acima da maioria se refere, mostra um par de pés de uma pessoa negra visivelmente maltratados, com unhas sujas e veias salientes. E esses pés calçam um chinelo feito com um par de garrafas "pet" amassadas e presas com pedaços de trapos de pano. No primeiro momento tal imagem realmente nos congela, nos petrifica, dada a sua representação aparente da miséria a que muitos seres humanos são submetidos. 

Mas daí, como nunca aceito as imagens como fatos, começo a me perguntar: por quê? Porque esta imagem nos choca tanto? Mas antes de tentar responder aos porquês, preciso pensar nos "como", nos "quem" e nos "onde". Como foi feita essa imagem, em que circunstâncias? Quem fez a foto, quem é o fotografo e quem é o "modelo"? E finalmente onde foi feita, em que país? Muitos dirão que esses fatores não importam, pois a imagem encerra uma verdade, traduzindo a miséria humana, a desigualdade social etc., etc.. É? Estão certos disso? Ou preciso "perguntar aos universitários"? Não poderia ter sido essa imagem produzida como uma peça publicitária de alguma companhia de refrigerantes? Ou sobre as maravilhas dos derivados de petróleo? Não poderia ter sido essa imagem feita por algum fotógrafo famoso, usando como modelo alguém também famoso e que teve seus pés maquiados para parecerem maltratados? E onde foi feita, sendo que se a resposta for “em algum país desenvolvido” muda radicalmente a interpretação. Então pensem em todas as coisas boas que esta imagem pode ter causado e proporcionado... Ao menos a quem a produziu. Não consegui encontrar a história por trás dessa foto e mesmo que a encontrasse, ela talvez não fosse verdadeira.

Mas retorno a primeira pergunta, sobre o “por que” tal imagem nos choca tanto. Primeiramente, existe uma associação imediata, que cria automaticamente na cabeça do observador uma história socialmente tocante por sua tristeza e crueldade naturais: aqueles são pés de um uma mulher negra, que mora num lixão em uma grande cidade brasileira e pega os restos da sociedade de consumo nojenta para calçar os pés maltratados por caminhadas inglórias em busca da sobrevivência. Uma humilhação da espécie humana, que nos traz lágrimas de pena e compaixão. Nos sentimos culpados mas conformados em ter as nossas "havaianas", nos sentimentos culpados, mas vamos a praia com ela. Nos sentimos culpados, ah, mas deixa pra lá que isso é apenas uma imagem na Internet. E por que essa imagem nos choca tanto, do mesmo jeito que nos choca ver a pobreza na novela da televisão, de ver daqui, de bem longe, a fome na Etiópia? Não seria porque pensamos: não sou tão pobre que precise fazer isso... Ou seja, como no velho dito popular conformista: eu reclamando de comer bananas e outro vem atrás comendo as cascas...  Nos petrificamos, mas logo nos conformamos. Nos congelamos, mas logo voltamos ao normal. Até que mais uma imagem destas nos seja mostrada. 

Agora, existe um outro aspecto pouco percebido, que nos coloca em outra questão também relativa ao "onde", mas não onde foi feita, mas onde é exibida, remetendo-nos também às outras perguntas sobre “quem” exibiu e “como” foi exibida. A publicidade é a arte da mentira e não está apenas restrita às salas refrigeradas das agências de propaganda, mas em todos os momentos em que existem pessoas reunidas, seja pessoalmente ou em redes sociais. É o chamado “Marketing Social”. Então, podem usar uma imagem dessas para demonstrar, por exemplo, a importância da sustentabilidade, essa coisa tão em voga atualmente. Imagine um "slogan" mais ou menos assim "Sustentabilidade: calce essa idéia!" E isso, claro, veiculado nos lugares certos, com um texto politicamente correto, contando a história de pessoas que fazer de suas vidas uma luta pela sobrevivência do planeta. E de preferência contando uma história bem triste e chorosa, mas que demonstre que indistintamente todos somos responsáveis pelo planeta. Ainda assim nos sentiríamos chocados, mas aliviados porque alguém se preocupa realmente com os destinos de todos. E poderemos comemorar isso com uma garrafa gigante de refrigerante. 

As imagens afinal podem seduzir de uma forma muito mais clara mas podem também esconder verdades cruéis. Uma imagem de um homem carregando um cavalo sobre a carroça é naturalmente interpretada como sinal de apego aos animais, mas quem garante que não é uma imagem de um homem levando o cavalo que não lhe serve mais, por estar com uma pata quebrada, ao sacrifício? 

Muito mais que as palavras, ditas ou escritas, atualmente é a imagem que nos consome e nos guia, nos manipula. Estamos muito preguiçosos para pensar nos contextos de uma imagem e a tomamos com o fato, construindo sobre ela uma história que nos alenta, diminui nossa dor e nos faz sorrir, mesmo que seja apenas um sorriso falso e momentâneo. As imagens sejam elas fotos estáticas divulgadas em Internet, ou em movimento como na televisão ou no cinema, nos dizem como e em que pensar, como reagir, como proceder. Nunca pensamos sobre ela, pois é oficial e publico que elas valem mais do que mil palavras. Fomos levados a acreditar que imagens não podem ser questionadas, ao contrário de palavras. Fomos condicionados a aceitar toda a verdade que encerra uma fotografia. E vivendo como vivemos, numa sociedade imediatista, egoísta, mentirosa e preguiçosa, somos tentados e instigados a não discutir uma imagem, aceitando-a como verdade absoluta. Incitados pela verdade da imagem, criamos, a verdade que queremos e que nos conforta, e nos conformamos com o que chamamos de vida. Mas esta, ao menos a nossa, não é composta apenas de imagens, mas de palavras. E palavras que não são verdades absolutas, mas pessoais, como qualquer verdade deve ser. 

A imagem é ditadura, a palavra é guerrilha. A imagem é conformismo, a palavra é reação. A imagem pode valer por mil palavras, mas mil imagens podem não produzir efeitos de reação que são provocados por uma única palavra. A imagem é estática, mesmo que sob a forma de cinema que no fundo é apenas uma ilusão de ótica, mas a palavra, esta é dinâmica. A imagem é sempre ilusão, momento congelado, enquanto a palavra é real, momento revelado. 

E se cada um de nós ao nos chocar, petrificar e congelar com imagens, procurássemos pensar e analisar nossos “porquês”, “ondes” e “comos”, fatalmente nos depararíamos com surpresas que nenhuma vã filosofia poderia supor. Se não nos entregássemos a ditadura da imagem, mas a guerrilha da palavra poderíamos sim, construir um mundo melhor. Por fim, não acredito nas imagens, mas nas palavras. E haja visto e haja dito, não digo o que vejo, digo o que sinto. E sinto muito se pergunto, com minhas próprias palavras, porque com as imagens te chocas enquanto com as palavras não te tocas?


06/11/2012

O Homem dos Pés de Plástico

O Homem dos Pés de Plástico
Luiz Carlos Barata Cichetto

Man Walking in the Rain - Alberto Giacometti

Caminhei com meus pés de plástico por estradas rudes em direção ao tempo corrente, feito água da torneira, quente na chaleira. Meus pés estão derretendo e inchados feito a cabeça de um poeta. Tempo corrente, água corrente e torrente de lavas derretendo meus pés de plástico e o destino que dói feito o intestino. Cólicas de destino, não de intestino. Qual a direção do vento que sopra, do vento que sobra? Meus cabelos indicam o norte, minha cabeça indica a morte. Quero estar sozinho agora, hora em diante, de acordo com o adiantado das horas. De que adianta estar adiantado, quando a vida está atrasada? Estou cansado e meus pés de plástico que são empurrados por minhas pernas de chumbo agora doem. Estão gastos e eu não gasto mais um tostão em sapatos. Ando descalço, que meus pés são de plástico. Duro. Rígido. Porque o caminho duro exige pés rígidos. E se não fossem meus pés de plástico eu não conseguiria mais andar nem um metro, nem mais um passo eu daria. Mas ainda assim dou meus passos, esparsos, compassos bêbados traçados com meus pés de plástico. Onde estou indo, pergunta o homem com pés de aço. A nenhum lugar, respondo com minha língua de metal. Ou a todos eles ao mesmo tempo, ainda completo. E respondo isso porque segundo Kafka, o que me importa são meus pés, e não o lugar onde piso. Mas não piso em nenhum lugar e o que importa não são os pés, mas as pernas que o carregam. E as minhas estão doloridas. Pesadas. De onde foi que eu cheguei? Para onde estou indo? Tenho as perguntas que todos têm, mas não procuro as respostas nem os caminhos, o que importa é que tenho pés de plástico e que me levam a algum lugar. Talvez a Praga, talvez ao Hemisfério Norte com suas putas encapotadas. Talvez ao Sul, das lépidas senhoras de loiros cabelos caindo na testa. Talvez a lugar nenhum, enfim. Porque não quero estar em lugar nenhum, porque em todos eles eu não fico. Bem. Ontem furou o ultimo par de sapatos e eles eram de couro. Odeio sapatos de plástico, pois já tenho pés de plástico. Minhas unhas são garras afiadas que cortam o arame, que cortam sua pele, minha querida. Não reclame do cheiro dos meus pés, porque ando muito e meus pés escorregam nas calçadas de cimento. Eu queria ter pés de cimento, pés de concreto, mas eles são mesmo feitos de plástico. Tem uma placa no caminho? Qual a direção que ela mostra? As placas não mostram caminhos, apenas direções. E eu, realmente não sei a que direção me carregam meus pés de plástico e minha cabeça sem coração. Não consigo ir muito longe! Mas, também como disse um dia um certo escritor, "eu escrevo diferente do que falo de modo diferente do que escrevo", não sou Kafka, sou Barata e não sei onde andam minhas pernas, quem sabe na Primavera, de Praga, eu possa caminhar entre as flores, porque entre as dores já estou cansado. É sim diferente o escrever do falar e se não falo como escrevo é porque a garganta arde de tanto respirar. Acabou a festa, e o que resta é o que não presta. Empresta um trocado? Preciso casar... Empresta seus pés de cimento que os meus são de plástico? Empresta? Tenho dedos das mãos doloridos de tanto escrever. Então, deixo agora contigo apenas estas linhas, digitadas em papel intocável e indelével. Invisível. E fui jantar que não sou de ferro. Nem de plástico!

05/11/2012

Eu Ouço Vozes - A História da KFK Webradio - A Rádio Que Tocou Idéias...


Eu Ouço Vozes - A História da KFK Webradio - A Rádio Que Tocou Idéias...
Luiz Carlos Barata Cichetto


Eu diria que a primeira coisa que lembro de ter escutado na minha vida foi o som do rádio. Não recordo de, antes das vozes emocionadas das rádio-novelas ter escutado outra coisa. Mesmo a também emocionada voz da minha mãe é uma lembrança posterior. E foram tantas essas vozes que hoje se misturam num burburinho esquizofrênico dentro da minha cabeça. De fato eu ouço vozes, nem sempre de pessoas mortas, mas algumas ainda vivas. Um burburinho que mistura as vozes de Silvio Santos e sua partner Maria Helena na Rádio Nacional de São Paulo com a de Zé Béttio e sua pantomima que misturava sons de burros, latas batendo e muita musica brega, “Joga água nele!”. Ouço vozes como a de Vicente Leporace que com seu "Trabuco vai dar um tiro nas noticias dos jornais", como a de Gil Gomes que "ao final de mais um Dramas da Cidade, lhes diz... Bom dia!", no melhor uso de reticências que alguém já fez na história das comunicações. E ouço ainda outras vozes, como a de Antonio Celso dando a noticia do assassinato de John Lennon na Bandeirantes FM, como a de Darcio Arruda na Difusora AM e como a de José Paulo de Andrade na Bandeirantes AM, que me acordava com o miado do gato e seu pulo, todos os dias para ir ao trabalho durante décadas. E ainda ouço a maravilhosa e impostada voz de Hélio Ribeiro, com sua filosofia de botequim com ares de Nietzsche, embalada por traduções simultâneas de musicas populares. E eu ouço vozes, muitas outras vozes, como a de Barros de Alencar e seu inglês com sotaque puramente nordestino, Ramos Calhelha, Ferreira Martins e até mesmo as vozes de locução esportiva de Fiori Giglotti e José Silvério. Vozes de cantores mortos, de locutores bêbados, de jornalistas comunistas e humoristas que perderam a graça. Ouço vozes, muitas vozes!

E mesmo longe do rádio, continuava escutando essas vozes. E as ouvia até mesmo dentro do escuro do cinema. E em filmes sempre me identificava com personagens ligados de alguma forma a elas. "Supersoul", o personagem de Clevon Little em "Vanishing Point", um radialista cego e negro, que era a “Voz da Liberdade” e de certa forma da consciência, de Kowalski, que fugia de algo pelas estradas americanas cheias de hippies motoqueiras nuas e fanáticos religiosos. E até mesmo em filmes até meio idiotas, como “Tchau Amor” estrelado por Antonio Fagundes em que o personagem é um radialista de sucesso que traça a gostosa filha do dono da rádio e cai em desgraça terminando por suicidar depois de transmitir da unidade móvel por toda cidade, uma declaração de amor a ela. O rádio e suas vozes misteriosas e tão reais quanto a minha...

Arte: José Nogueira para www.abarata.com.br
E dentre as vozes que ainda ouço, das vozes que nunca calam dentro da minha cabeça, uma das mais importantes e emblemáticas foi a de Jaques, que nas madrugadas de uma rádio pertencente a igreja católica nos levava numa viagem do mundo do Rock Americano e Europeu ao mais baixo underground da cena paulistana da segunda metade dos anos 1970. "Kaleidoscópio" era escutado num rádio de pilhas, hora estrategicamente colocado na calçada, hora sob o travesseiro. E da meia noite as duas da manhã, todos os dias, Rock'n'Roll, poesia e outras formas de expressão, eram a únicas vozes existentes num mundo que já deixava de pertencer aos "jovens". E ali ouvi também outras vozes, além de vocalistas de Rock, como David Byron e Ouzzy Osbourne, eu ouvia as vozes de Valdir Zwestch que na época fabricava sonhos, Maytrea e Silvelena, Nano & Ge que fabricavam poesia, além de muitos outras E aquela voz macia, mas firme de Jaques Sobretudo Gersgorin ou apenas “Jaques Kaleidoscópio” ficou feito um fantasma esquizofrênico dentro da minha cabeça durante décadas, me soprando no ouvido o que eu tinha que fazer. Até que um dia resolvi escutar essa voz. E fiz.

Ainda nos anos 1970, antes das vozes do Kaleidoscópio, de posse de um gravador mono cheguei a montar fitas com programas de rádio. Era comum entre os amigos a troca de fitas cassete gravadas com musicas. Eram simplesmente musicas copiadas de discos de vinil ou até mesmo, para quem tinha a sofisticação de dois gravadores, outras fitas cassetes. Eram fitas de 60 ou 90 minutos que tinham no rotulo escrito os nomes à mão ou, mais sofisticadamente em máquinas de escrever. Mas as minhas tinham um toque diferente, pois eu gravava minha voz apresentando e até falando algo sobre a musica ou artista. No inicio os amigos riram e achavam esquisito aquilo, mas depois começaram a gostar da idéia e me pediam. Com o tempo, comprei um aparelho três-em-um que facilitava o trabalho e tinha entrada para dois microfones, o que dava um ar de sofisticação incrível ao meu projeto. Cheguei até a criar um nome, "Rádio K7", inspirado nos prefixos das rádios comerciais e um logotipo tosco que era desenhado diretamente na caixinha da fita.

Mas, se até o inicio terceiro milênio ter um programa de rádio era uma coisa quase impossível, longe do alcance da maioria dos sonhadores, ter uma rádio então, era coisa de abastados grupos de comunicação que detinham o poder de vida e de morte sobre esses sonhos. Mas com o advento da Internet de banda larga e os consequentes menores custos de transmissão, aliado a programas muito mais simples de edição de áudio, começaram a surgir as primeiras estações de webradio. No Brasil, a primeira que tive contato foi com a “Rock Geral”, de Paulo Rogério, um micro-empresário que tinha uma enorme discoteca de Rock e uma paixão pela também incomensurável pela musica e que montara um servidor próprio dentro de seu escritório. E no fim do expediente, Paulo se punha a converter musicas, gravar locuções e vinhetas, num trabalho que exigia muito tempo de montagem e edição. Em 2001 conheci pessoalmente o Paulo o que propiciou que eu aprendesse um pouco sobre rádios em Internet. Criei o site da “Rock Geral” e ficamos amigos, até que ele desapareceu completamente, levando com ele seu sonho. E o meu.

Alguns anos depois, um ex-amigo, dono de uma obscura banda de Rock no interior de São Paulo, tinha sido convidado para participar de uma webradio e acabou me convencendo a levar o projeto de A Barata esse formato. Relutei um pouco, pois afinal naquele momento a luta por outras causas era árdua e as ferramentas, softwares de computador e todo o trabalho tendo que ser feito pelo apresentador não me agradava muito, mas no fim acabei aceitando, porque ainda ouvia aquelas vozes e elas me diziam o que fazer.... Durante mais de um mês briguei com o aprendizado dos programas de computador e gravei algumas dezenas de testes, sempre apagando o resultado, até que, marcada a "estréia" decidi não criar nada diferente, e simplesmente soltar a voz, deixando as palavras fluírem e a musica tocar, tudo no improviso, sem roteiros nem listas prontas. E, durante as sete semanas que durou o "Rádio Barata", aquele antigo sonho parecia realizado. Até que, movido por uma mistura de ciúmes com prepotência, meu ex-amigo, encontrou uma desculpa discordando de um programa com temas românticos que apresentei e, como era o fiel escudeiro do dono da rádio, fui demitido por e-mail lacônico no dia seguinte. E jurei enterrar esse sonho de rádio. Não queria mais escutar vozes. Nem ser uma delas.

Menos de um mês depois fui convidado por uma figura misteriosa, que não divulga seu nome verdadeiro, origem nem nada, a apresentar um programa na sua recém criada rádio web. Ele tinha um blog de muito sucesso, desses de “download” de musicas. Relutei por medo de que pudesse acontecer o mesmo que na frustrante tentativa anterior, mas a figura me garantiu que eu teria liberdade total. Isto posto, passei timidamente a montar meus programas semanais, de duas horas de duração, que alcançavam, dentro do universo das rádios internet, uma audiência significativa alavancada pelo meu histórico dentro de um dos sites de Cultura Rock mais emblemático, e que, juntamente com o Whiplash, tinha se tornado uma referência na Internet, gerando inúmeros filhotes. Renascia então o “Rádio Barata”, programa semanal onde eu incluía poesia, entrevistas. E como sempre gostei de não ser apenas um coadjuvante, mas sempre participar ativamente de tudo, passei a colaborar com temas, idéias, criação de outros programas, músicas e até mesmo na construção do website da rádio, que até então se mantinha apenas com blog. Mas um ano e meio, 69 programas, depois, a fogueira de vaidades novamente foi acesa e depois da gravação de um programa em que nós dois participávamos com a "mediação" de outro colega, descontente porque sua voz não estava mais alta que a minha na gravação final, a misteriosa figura simplesmente deflagrou uma campanha difamatória contra mim entre os outros participantes da rádio, me deixando isolado. Como o poder gera amigos e quem está do outro lado é sempre inimigo, sentindo-me ostracizado, simplesmente me demiti no ar. E naquele momento estava decretado o fim do meu sonho de deixar de apenas ouvir vozes, de ser uma delas.

Ouço vozes, o tempo inteiro. E elas me ditam palavras e me dizem o que fazer... Então escrevo e preciso falar. Escrevo muito e falo demais. Preciso escrever e falar para que essas vozes me deixem em paz. É assim que me afasto de uma loucura bem maior, é assim que me afasto da angústia e do suicídio. São essas vozes que ouço que me fazem sonhar. E me fazem viver. E foi assim, ouvindo essas vozes que decidi que seria o momento de criar meu próprio projeto de rádio, ao menos na internet, já que as ferramentas eu tinha dominado e os custos eram bem acessíveis. E assim nasceu, ainda naquele final de ano de 2010, um de meus maiores projetos. E um dos meus maiores fracassos. 

E quando falo em sucesso e em fracasso, não me atenho apenas a questão financeira, pois nunca atrelei meus projetos a lucros financeiros. O cineasta espanhol Fernando Trueba disse há um tempo atrás em uma entrevista, quando perguntado sobre o que era sucesso para ele, que "o sucesso é ir lá e fazer. Se você tem um sonho e o realiza, isso é um sucesso". O "sucesso" financeiro e de glórias, seria apenas uma decorrência, ou não, da realização de um projeto. E o fracasso também não significa necessariamente um prejuízo financeiro, mas sim, no meu conceito e talvez na contramão da própria definição de Trueba, não apenas não fazer, mas simplesmente ver esse sucesso se transformar em fracasso porque ele não foi bem projetado, foi projetado em bases fracas, ou simplesmente como foi o caso da KFK Webradio, estar no momento errado e ter contado com as pessoas erradas. E pior que isso, perceber que o sucesso foi o que causou o próprio fracasso.

Antes de estabelecer os conceitos da KFK Webradio, e até mesmo antes de ter esse nome, eu havia escrito um texto falando sobre que era preciso alguém definir o que era a tal “radioweb”. Aquilo não era rádio, mas algo que, usando algumas bases do que se convencionou como rádio, usava nova linguagem, novas plataformas e meios. E de fato era uma coisa diferente, uma outra mídia. E da mesma forma que assistir um filme na televisão não é cinema, rádio na Internet não é, definitivamente rádio. Mas mesmo assim, pois era o mais parecido com meu projeto de rádio, e por ser a única forma que eu poderia fazer, sem depender de concessões e apoios financeiros inatingíveis, resolvi criar uma “webradio”. E como eu sempre ouvi vozes, achei de usar essas vozes na construção de algo que ia exatamente na mão inversa daquilo que se fazia. As rádios web são na imensa maioria, vitrolões tecnológicos e mesmo tendo alguns programas personalizados, seguem o sistema de tocador de musica. A maioria não tinha e ainda não tem personalidade, ou a tem demais, sendo apenas veículos pessoais de seus "proprietários". Em tempo: o conceito de dono de uma rádio não se aplica a uma rádio web, pois não existe nada, nem estúdios, nem profissionais nem equipamentos. A propriedade quando muito se aplica ao computador onde o "dono" cria suas "playslists" ou ao domínio na Internet. E isso é bom e mal ao mesmo tempo, pois se por um lado, extingue de certa forma o conceito empresa do rádio, cria por outro um organismo acéfalo sem qualquer estrutura organizacional e sem o menor critério. 

Pois então, ao estabelecer os critérios de criação e funcionamento da rádio, busquei primeiro opiniões e participação de pessoas, crente que com essas pessoas, cabeças pensantes e braços de trabalho, chegaríamos a um amalgama de desejos e sentimentos únicos. Comecei a errar ai. Algumas pessoas se comprometeram a participar, mas logo nos primeiros trabalhos pularam fora. A participação também envolvia custo financeiro e que, dividido estaria acessível a todos, por ser bem baixo. De novo errei e ainda tive que escutar que ninguém põe dinheiro no sonho alheio. A conversa de "sonho que se sonha só..." é apenas um blá-bla-blá inútil que na pratica não existe. Ou existe desde que o sonhador “principal” o torne realidade e depois os outros sonhadores passivos dividam o sucesso (ainda o termo "sucesso" como realização). Em outras palavras, o sucesso é assumido, desde que não dê trabalho nenhum. Não existe mais o compromisso com o coletivo e “comunidade” é apenas um nome pomposo para favela...

Durante quatro meses preparei o terreno, defini o estilo musical predominante, embora um tanto aberto, com poucas exceções e primando pela qualidade musical. Criei o nome, vinhetas, com a locução profissional, criei e produzi dezenas de programas. Mas o principal estavam nas intervenções, espécie de intervalos entre blocos de musicas e programas onde eram apresentados leituras de poesia, declarações de outros artistas e pensadores, história do rádio, áudio integral de filmes e desenhos animados e até hinos de clubes de futebol. E assim nasceram intervenções como: Almanaque KFK (aberturas de séries e desenhos animados) ; Cópia Infiel, Katarze, KFK FC, Poesia é Merda!, PQP – Puta Que Pariu!, Quer Um Queijo?, Renitências, Sessão Desenho, com áudios de episódios de desenhos animados, Sombras Sonoras, Sub-Versões, Tem Cigarro Aí? E outros. Quanto aos programas estavam, além do Rádio Barata que em determinado momento foi apresentado diariamente, Cinema Cego, que era o áudio integral de um longa metragem, Concertos Para a Juventude, Prisma, uma programação de um dia inteiro apenas dedicada a uma única banda, no caso o Pink Floyd, Rádio Liquida, Heróis do Brasil, Fusão Cinésica Essencial e outros. Alguns programas foram criados e entregues a produção e apresentação de outras pessoas, como foi o caso do Faixa 7, que apresentava sempre as faixas de numero sete de determinados artistas ou bandas. Além disso, foi aberto espaço a todos aqueles que se dispusessem a produzir e apresentar programas, com liberdade total de produção, chegando a existir 18 programas produzidos e apresentados por outras pessoas. E nesse ponto todos ouvíamos vozes. Vozes como a de Ricardo Alpendre, cantor e locutor profissional que gravara a maior parte das vinhetas, Anna Gonçalez, Agostinho Carvalho, Renato Pittas, Gisela Jardim, Marcelo Rocha, Raul e Ian Cichetto, Marcelo Diniz, Amyr Cantusio Junior, André Sachs, Antonio Canella, Renato Paiva, Caverna, Paulo Stekel, Bell Giraçol e Delma Mattos. Vozes... Vozes.

Baseado no anti-conceito:"interrogações, mutações, metamorfoses e um pouco de música sem rótulos", criei e produzi programas nas vertentes mais diversas da musica de qualidade, sem buscando na pluralidade as bases que fizeram da KFK um projeto amplo dentro dos preceitos do rádio. Um dos destaques foi a exibição na integra e direta, num único dia, de "O Anel do Nibelungo" de Richard Wagner, com a duração de mais de 10 horas, algo que acredito inédito ou ao menos muito pouco feito em qualquer rádio no mundo. Outra criação que acredito histórica, ao menos dentro das webradios, foi a criação do programa “Deidades - Deus e o Diabo na Terra dos Bytes - ou Vai Dormir, Porra!", onde eu, juntamente com o musico carioca Agostinho Carvalho, "vestíamos" os personagens de Deus e o Diabo e realizamos um "talkshow" anárquico e criativo, mesclando criticas musicais e sociais com um humor nonsense. O programa durou 25 edições semanais e foi efetivamente algo que marcou. 

As entrevistas com músicos e artistas e geral, foi também um marco importante, sempre tratado com muita atenção. Programas como o Radio Barata e Heróis do Brasil apresentaram dezenas de entrevistas, ou melhor conversas, com artistas que tinham total liberdade de expor idéias e mostrar seus trabalhos. Muitos músicos de bandas pouco conhecidas do publico como Slippery, Psychotic Eyes, Paradise Inc, Imagery e Banda do Sol entre outros, passando pelas já bem conhecidas, como de bandas como Tomada, Cracker Blues, Uganga e Carro Bomba. Dentre esses conhecidos, aquela que mais foi reapresentada e comentada, foi um especial com Rolando Castello Junior, lendário baterista da banda Patrulha do Espaço, com quatro horas de duração. As conversas era gravadas via Skype e editadas apenas para a inserção das musicas dos artistas, sem nenhum corte.

Sempre levei a sério a missão que estabelecera para a KFK: "A Rádio Que Toca Idéias", colocando a musica não como fator dominante da programação, mas como uma deflagradora de idéias, instigadora e contestadora e assim criando programas como o "Katarze" e o "Rádio Cortição", cujos objetivos eram o de mesclar opiniões, sentimentos e principalmente idéias, num único espaço realmente coletivo.  Aliás, a chamada "participação coletiva" era o centro da criação da rádio e foi esse a razão do seu "fracasso". Desde o principio, cooptei pessoas que acreditei ter a mesma linha de pensamento acreditando que pudessem de uma forma efetiva e prática participar dos destinos do projeto. A principio a maioria entendeu, mas em pouco tempo, um a um foram desistindo. A gota d’agua fatal foi efetivamente a participação financeira que muitos se propuseram e pouco a pouco foram desistindo, dando desculpas ou simplesmente desaparecendo. Financeiramente era impossível bancar sozinho aquele projeto e a desistência mês a mês de mais e mais pessoas, abriu um rombo enorme, a ponto de gerar uma divida imensa com a empresa que fornecia o "streaming". Tentei ainda de todas as formas manter o projeto vivo, criando e oferecendo camisetas, abrindo possibilidade de participações de simpatizantes e até mesmo a possibilidade de colocar pequenos anúncios, sem qualquer resultado positivo. Num determinado momento, um professor universitário, de nome Ayrton Pinto Silva se sensibilizou com o projeto e se dispôs a colaborar financeiramente, mas, poucos meses depois, alegando problemas financeiros, também pulou fora. E no fim, é claro, não tinha como esse processo não causar rupturas até mesmo com amizades antigas e isso acabou acontecendo. Os antigos companheiros foram simplesmente silenciando, desaparecendo e eu fui ficando sozinho. Apenas escutando as antigas vozes solitárias dentro da minha cabeça.

Finalmente, em Setembro de 2012, um ano e meio depois, com a KFK Webradio arrastando-se, sem nenhum interesse em manter um zumbi devorando o que restava da minha "Vontade Indômita", decidi encerrar definitivamente suas atividades. Não fazia sentido manter a KFK Webradio no ar tendo como audiência apenas pouquíssimos interessados. Não fazia sentido criar e manter a programação de forma solitária.

E assim, sem aviso, sem postagens em redes sociais, sem reclamações, nem lamentos, como bem gostam aqueles... A KFK Webradio deixou de existir, sem ao menos uma voz saudosa reclamasse ou lamentasse. Assim deixou de ser outra voz. A minha voz estava calada e as vozes dentro de mim também silenciaram. Não havia mais interrogações, mutações, metamorfoses e (nem) um pouco de musica sem rótulos. Não havia mais idéias a serem tocadas.

E por fim existe uma analise a respeito que é a seguinte: da mesma forma que as facilidades oferecidas pela tecnologia atual propiciaram o surgimento de um numero insuportavelmente alto de escritores e poetas, existindo quase em numero idêntico ao de leitores, o mesmo ocorre com as rádios em internet. É muito fácil e muito barato ser ter hoje uma rádio dessa forma, o que faz com que as pessoas as criem apenas para satisfazer seus egos. E acabam criando rádios que são escutados apenas por eles próprios. Com a popularização de sites como o Youtube e outros e a facilidade como se baixa musicas para os computadores, a "necessidade" de uma rádio, seja pelo conceito tradicional ou moderno simplesmente se esvaiu. No fim, da mesma forma que qualquer e todos se considera tanto escritor quanto jornalista, quanto produtor e "dono" de rádio. Todos os sistemas e práticas de produção artísticas foram banalizadas, se tornaram inócuas e inúteis. E uma coisa inócua e inútil é simplesmente desnecessária e inútil. Não percamos, pois mais tempo e dinheiro com tais desnecessidades e inutilidades.

Mas, agora, que eu continuo ouvindo vozes, isso continuo mesmo! Quem viver... Ouvirá!

03/11/2012

O Cigarro e a Poesia


O Cigarro e a Poesia
Luiz Carlos Barata Cichetto

Muita gente reclama que eu escrevo só bandalheira, que eu reclamo demais e faço apologia ao cigarro. Faço apologia ao sexo e faço apologia a poesia. Mas ultimamente ando até um tanto calmo, nem tenho escrito tanta bandalheira, não. Elas eram muito frequentes nas minhas poesias, mas como ando poetando pouco, deixei um pouco de lado. Quanto ao cigarro foi o que sobrou de vicio, porque até mesmo meu antigo companheiro Cynar eu quase não encontro mais. Os bares ficaram sem graça sem poder fumar. Em casa eu fumo, mas nunca gostei de beber sozinho. Não tem graça beber e não ter com quem contar histórias, mentiras ou não. Os bares cheios de fumaça de cigarro, com cachaça rolando no balcão e um bando de bêbados desgraçados contando suas desgraças e cornices uns aos outros e dos outros... Não tem graça boteco sem cigarro. Falta o ar. Acendo outro agora, cigarro melhora a concentração, há estudos científicos comprovando isso. E em cada texto é quase um maço de Marlboro. Uma crônica ou uma poesia e um maço de cigarros inteiro. É o preço que eu pago por gostar de escrever e de fumar. É certo que estou ganhando um pulmão podre e possivelmente um câncer no futuro, mas gosto tanto de fumar, gosto tanto do cheiro do cigarro e do cheiro da poesia, que nem me importo de apodrecer, se ainda puder escrever e fumar. Lembro agora que, ao contrário de meus companheiros de escola primaria que colocaram na boca seus primeiros cigarros porque era assim que fazia para demonstrar que agora não eram mais crianças, eu comecei a fumar por sentir o cheiro dos cigarros sem filtro que meus avós fumavam. eu sentia vontade, sentia mesmo um desejo tenso e imenso em tragar o cigarro. Tenho amigos que fumam maconha e dizem, porra, mas com o cigarro não sente-se nada, "não dá barato". Não? Não dá a quem não sente o prazer de fumar como eu sinto. O prazer em respirar aquela fumaça, o prazer que começa no "clic" do isqueiro, na chama, no ato de acender o cigarro e vê-lo como se fosse um ser vivo brilhando no escuro. Vagalumes que se queimam, fênix que renascem no escuro. Em minhas épocas de solidão era o cigarro o meu companheiro fiel. No escuro do quarto, ele me ouvia, e como melhor amigo estava ali, do meu lado, quente e luminoso. E nos discursos e saraus, nas conversas de bar era ele que, ao ocupar minha mão não me fazia sentir embaraçado em não saber onde coloca-la. Mas agora  não existem mais saraus ou são eles tão acépticos que nem a poesia sobre o cigarro eu posso declamar. No bar é proibido, assim como nas salas de esperas de cinema, e nos próprios filmes onde os atores também são proibidos de fumar. Que graça tem um cowboy que não fuma Marlboro, um guerrilheiro que não fuma charutos cubanos, um comedor canalha que não acende seu cigarro com o olhar sorrateiro nos peitos da gostosona?  E que graça tem a gostosona que não tira os olhos dos nossos olhos do outro lado da tela, sem estar ter seu cigarro numa piteira enorme e fálica nos lábios? Não vou mais ao cinema, sem cigarro não tem graça. E nem no boteco. Aliás, prefiro mesmo é ficar aqui sentado, escrevendo um monte de bobagem e sem ter o que falar, acendo um cigarro e fico olhando o cursor piscando. E decido então falar sobre o cigarro. Faria uma poesia se ainda a poesia não fosse tão proibida quanto o cigarro. Não porque exista uma lei proibindo a poesia, mas ela também não faz mais parte do cinema, dos botecos e dos teatros. E do mesmo jeito que o cigarro, perdeu seu lugar a vícios mais lucrativos, como a acéptica hipocrisia, por exemplo. E deixem-me morrer em paz, não preciso de seus conselhos, nem do seu consolo, nem de seus remédios Então deixa eu escrever minha poesia e acender outro Marlboro. De maço. Vermelho!.

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Cigarro
Barata Cichetto
Do Livro "Cohena Vive!" - 2012

Eu, que fui testemunha de muitas mortes e muita luta
Sou agora da minha própria sorte testemunha absoluta
Não estou deitado num leito de hospital, sentenciado
Ou condenado e o indulto esperando ser beneficiado.

Testemunho a minha própria morte ao espelho mirar
Diariamente ela, ali, olhando no fundo do meu olhar
Colocando sua mão sobre meu ombro, beijando meu rosto
Testemunho seu reflexo, pois sou eu a morte a contragosto.

Não tenho crenças que aplaquem a dor do meu próprio luto
Sofro então das descrenças e das certezas do nada absoluto
Sinto meu corpo apodrecer numa decadência piedosa e terna
Dia a dia testemunho meu fim na indecência da morte eterna.

Eu, que fui testemunha ocular de nascimentos e dores de parto
Sinto agora nublar minhas vistas, escuro dentro do meu quarto
Um outro cigarro que morre entre meus magros dedos, esfumaça
E me faz pensar que tudo acaba igual ao meu cigarro, em fumaça.

01/11/2012

Onde é Que Está Meu Racumin?


Onde é Que Está Meu Racumin?
Luiz Carlos Barata Cichetto


Eu, que sou paranóico, que acredito em todas as teorias de conspiração, mas que não acredito em deuses, igrejas e santos. Eu, que espero apenas acabar o que outros começaram: a minha existência. Eu, que não acredito em tradição, família ou propriedade, nem na santa igreja católica, nem em marias nem em jesuses. E não acredito na remissão dos pecados, nem na vida eterna amém. Nem além e nem aquém. Eu que não creio, que acho tudo incrível. Eu que não deixo nenhum bem, mas também não deixo nenhum mal. Eu que ando, eu que caminho, eu que sei por onde ando a caminho do nada. Eu que não sei nada sobre o nada e muito menos nada sobre o tudo. Sobretudo, não sei de nada. Porque nada mais preciso saber. Não quero um copo de nada, os copos deixem vazios. Os corpos também. Não ateiem fogo às vestes, deixem grassar as pestes. Eu, eu que não acredito na evolução humana, nem no fim do mundo. Que não acredito em morte, e que acha que a vida não vale a pena viver com tanta diferença e tanta ignorância. Eu, que não mato baratas, que não gosto de macarrão e adoro beber água com limão. Eu que não espero por Godot, por Brecht, nem por ninguém. Deixei tudo para trás por nada nem por ninguém. Por nada! Obrigado. Obrigado por nada. Por nada, obrigado! Obrigado. Por nada! Escrever poesia é fácil, dificil é ser poeta. Ser homem, meu querido Charles Alemão, é fácil demais. Quer um autógrafo no meu livro? Ah, desculpa, não sei escrever! Outra noite sem dormir. Outra! Não tomo remédios pra dormir, o Racumin está escondido no armário da cozinha. Quem haverá de entender o desespero, afinal? Não espere, desespere, que ninguém compreende. Desistir ou resistir. Preciso decidir isso logo e ir dar comida às minhas gatas. Elas esperam isso de mim. Não a comida, mas minha decisão.  Ontem li uma poesia que era uma declaração de morte ao próprio poeta e não fiquei sabendo se ele deu um tiro nos cornos ou ficou famoso depois de suas dez tentativas. Fotografou a si mesmo e colocou no Facebook a foto com sua própria cabeça enfiada no forno do fogão. Não sei se morreu ou se era apenas uma montagem. Bobagem, isso sim! Bobagem isso, sim! E eu com isso? O importante é que não encontro o envelope de Racumin. Silêncio na noite. As gatas dormem e minha cabeça arde. Onde anda a merda do Racumin? Adoro escrever merda pra inglês ler e dinamarquês sofrer. E foda-se quem não gosta. Eu acabei esquecendo onde guardei a caneta, agora tenho que parar de escrever. O rascunho. Um monte de palavras que podem não lhe fazer o menor sentido, mas é o que tu tenho sentido. "Posição de sentido", bradou o Coronel à Companhia. "Alto!" Sou maior que eu mesmo e menor do que todos nós. Juntos. Eu? Não sei! “Onde é que está meu Rock’n’Roll?” Eu gosto do Alice Cooper, não gosto mesmo é do Arnaldo Baptista! Onde é que está meu Racumin?

Dei comida para as gatas!

Acabou! Achei!

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Amor, Poesia e Racumim
Barata Cichetto
Livro Virtual: A Verdadeira História da Betty Boop
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Estou cansado, minhas pernas estão pesadas agora demais
Não tem porque caminhar sem ninguém a carregar nos ombros
Acredito que não conseguirei caminhar com alguém jamais
Pois minha alma foi esmagada por toneladas de escombros.

Eu não tenho nenhum perdão, não mereço nem o desejo
Porque tenho uma alma perdida desde tempos antigos
Portanto estar morto ou não depende apenas do ensejo
Arrastando uma alma amassada sem mesas e abrigos.

Acreditei na paixão, na sinceridade de sentimentos puros
E então parecia renascer igual à fênix depois das chamas
Grata a sensação e entre pequenas coxas construí portos seguros
Mas não eram portos nem seguros, apenas de rameira de pijamas.

Sonhos são íntimos desejos, bucetas, facas e amoladas tesouras
Nós sonhamos com o que desejamos e ontem eu sonhei com ela
Mas seu ar de tesão deu lugar a uma agonia enorme e duradoura
Seu desejo nunca pertenceu a apenas mim mas a todos e aquela.

Estou cansado, repito, minhas agora pernas estão doloridas
Jamais conseguirei uma ereção prolongada em minha mente
Porque não gemes agora, criatura insana de entranhas coloridas
Então, porque não gemestes apenas por mim, por mim somente?

A morte rangeu seus 666 dentes de ouro, cobre e marfim
Ela sorri igual àquelas que derrotaram a minha existência
Mas ela comunica que ainda não, mas digo que estou a fim
Fui derrotado outrossim e agora não tenho mais resistência.

Deixei ser usado e não fui o primeiro nesta ou em outra cidade
Cuidado que poderás ser o próximo, o último que ela deseja
Usado no que existia de maior importância e em preciosidade
Entregando eu mesmo, minha cabeça em uma dourada bandeja.

Deixa agora eu continuar do lugar onde eu parei, penso
Porque naquele dia o meu bolo seria feito de Racumim
Mas foi um veneno com um poder mortal muito mais intenso
Um veneno forte que arrancou a minha alma de dentro de mim.

7/12/2005
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Registro no E.D.A. da F.B.N. : 508.830 - Livro 964 - Folha 118

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31/10/2012

Frases Soltas, Pensamentos e (In)Consequencias V: Esperança

Frases Soltas, Pensamentos e (In)Consequencias V: ESPERANÇA
Luiz Carlos Barata Cichetto

Esperança é um termo cristão que diz: conforme-se com sua mediocridade e com suas desgraças. E indica: acredite que tudo irá melhorar, trabalhe feito um burro e espere o salário no final do mês, depois morra com seu câncer esperando uma cura que nunca chegará, imaginando que depois de morto terás a recompensa de sua existência.

(Vídeo: A Esperança - Poema de Augusto dos Anjos, Musica Norman Bates, Belém, PA) Montagem do Vídeo: Barata

30/10/2012

A Volta do Filho Pródigo (“Seja Feliz!”)

A Volta do Filho Pródigo (“Seja Feliz!”)
Luiz Carlos Barata Cichetto
Vincent van Gogh, Esqueleto Fumando Um Cigarro, 1886. Óleo Sobre Tela, 32 X 24.5 cm. Museu Van Gogh

Diariamente escrevo crônicas e poemas. Compulsivamente, do mesmo jeito que fumo um cigarro atrás do outro enquanto escrevo. E nisso, há mais que um desejo de expressão, mais que um desejo de falar, há um desejo de vida. A cada escrito um pedaço da minha vida, compulsivamente vivida como quem fuma outro cigarro enquanto escreve. Mas acima disso, acima dessa compulsão pela escrita e pelos cigarros, em cada uma está explícito: "OK, eu vivi mais essa!” Como se a morte estive esperando eu terminar cada uma delas, me cobrasse a escrita e depois me dissesse: "Então, passastes no teste, vai ficando por ai!" E continuo por aqui, desafiando a morte escrevendo. Eu não a temo e acho que é por isso que ela tem me deixado em paz. 

Quanto às crônicas, imagino que cada uma delas é a última, e que sendo assim cada uma é um testamento, que será interpretado como a ultima expressão de meu desejo em vida. E imponho a cada uma delas uma condição: sigam seu caminho e tenham vida própria. E ao concluir a cada uma, olho bem em seus olhos e digo: "Vá-te em paz!", com aquele sentimento de quem se despede ou sepulta a um grande e querido amigo. 

Cada crônica, cada poesia, é a obra de uma vida e a vida de uma obra, é única e absoluta e traz consigo uma herança genética ímpar. E em todas a minha genética, embora a nenhuma eu imponha meus desejos, mas a todas a minha expectativa de vida. Elas são livres para nascerem e livres para partirem. E até para morrerem caso assim desejem. São como filhos e sendo assim não devem ser tratadas como propriedade, devem ser postas à luz do mundo para terem vida própria. 

Minha prole é minha escrita, muitas estão mortas, outras escondidas e muitas dormem pelas salas empoeiradas sem nunca serem compreendidas. Dormem em livros ou com seus bites e bytes em discos rígidos de computadores. Dormem enquanto eu fico aqui gerando outras, numa fecundação solitária e hermafrodita.

Mas seria mesmo assim a criação artística? Uma criação hermafrodita, onde o artista se auto fecunda e gera filhos sob a forma de obras artísticas? Seria, portanto, o artista um ser que se basta e, portanto, do mundo nada precisa? Seria este o motivo que faz a todos os artistas egoístas absolutos? (E não negue esse egoísmo, querido artista, pois não és aquele que deseja seu nome sempre estampado em suas obras? Que faz questão da paternidade como um pai que vê o filho alçar vôo?  Não finja socialismo, querido artista, pois no fundo não existe autenticamente arte comunitária.) E então, é assim que são geradas as obras, auto-fecundação? 

Mas a realidade é que um artista é sempre a mãe de sua obra, pois cabe a ele recolher e absorver informações e sentimentos feito espermatozóides, depois guardá-los, gestá-lo durante um tempo determinado e depois dar ao mundo a luz da sua criação. E quanto aos pais, estes podem ser muitos e cada um fornecer um espermatozóide diferente. Um fato presenciado, uma noticia de jornal, um sonho, um pensamento vago, uma saudade... Enfim, muitos são os pais de uma criação, fornecedores de espermatozóide criativo e cabe ao artista o papel materno e depois soltar a criação ao mundo para que, como qualquer ser vivo, tome seu caminho próprio. 

E sou eu, escritor compulsivo, feito uma cadela no cio, absorvendo todos os espermatozóides que encontro pelo caminho, oferecendo meu útero a todas as fecundações existentes e possíveis. Qualquer coisa. E então escrevo como quem acalenta um filho na barriga, e escrevo como quem espera esse filho crescer no ventre. E escrevo esperando o momento de dar-lhe a luz. E ao ver o texto pronto, final, embora sempre seja ainda rascunho feito a própria vida, olho para ele feito uma mãe recém parida e tenho orgulho. Dou-lhe um nome, oferece-o ao batismo pagão da Deusa das Artes e depois deixo-o livre, para que o mundo escute seus gritos, gemidos e lamentos. Deixo que o mundo o termine, deixo que o leitor, feito uma ama de leite termine de alimenta-lo. E espero que ele cresça sozinho e solto no mundo, trazendo pensamentos e provocando emoções. E tal a filhos, espero que ele tenha uma vida própria em contato com outras vidas, esperando apenas que um dia ele retorne, me dê um abraço e diga, não como um filho pródigo, mas dedicado: “Eu nunca esqueci de você”. E eu lhe direi: “Eu o amo demais para que fiques junto a mim. Vá e sejas útil ao mundo, pois foi a isso que o criei. Seja feliz!”

29/10/2012

Argumentos (Ou “Welcome To My Nightmare”)


Argumentos (Ou “Welcome To My Nightmare”)
Luiz Carlos Barata Cichetto
Imagem: Autor Desconhecido. FOnte: http://sonhosdesperto.blogspot.com.br/2011/10/terra-dos-sonhos-pesadelo-02.html

Estou péssimo! Passei a noite em claro lamentando lástimas e lastimando lamentos. Remoendo iras e moendo as unhas. Pensando sobre meu pensamento. Meu pensamento não foi criado nem moldado em laboratórios bem iluminados das faculdades, não sou fruto de um experimento, nem instrumento de músicos desafinados ou de deuses desanimados. Meu pensamento foi moldado pelas esquinas tortas, pelas ruas escuras das periferias, pelos amigos incolores ou de todas as cores, pelas putas com quem passeei de mãos dadas pela Avenida São João. Meu pensamento foi moldado pelos livros que comprei e pelos que roubei em bibliotecas; pelos que li inteiros e pelos que apenas vi a capa; e até mesmo pelos que rasguei e queimei. Meu pensamento foi moldado pelo escuro dos cinemas do centro da cidade onde putas faziam boquete no banco de trás, onde bichas se prostituíam no banheiro e onde cafetões escrotos cobravam sua parte, à porrada. Meu pensamento foi formado pelos filhos que formei, pelas mulheres que pensei amar e que pensava que me amavam, pelos que me detestaram e pelos mendigos a quem nunca dei esmola. Meu pensamento foi formado pelas surras de ripa que meu pai me dava, pelos gritos histéricos de minha mãe e pelo choro egoísta de meu irmão. Meu pensamento foi formado por dor e por sonho, por odor e por merda. Pelas mulheres que comi e pelas vezes que brochei, pelas punhetas que bati em banheiros de escritório querendo comer as secretarias gostosas que chupavam os caralhos dos patrões. Meu pensamento foi formado pelos chefetes invejosos, pelos gerentes mal amados e pelos patrões egocêntricos. Por padres macumbeiros e por pastores roqueiros. Nunca aceitei o dito pelo não dito e muito menos pelo bendito. Malditos foram aqueles que citaram ditos populares. Nunca aceitei um pensamento que não fosse pensado, um documento que não fosse documentado e um gozo que não fosse gozado. Nunca aceitei como prova contra mim o testemunho de ninguém. E existe um tribunal inquisidor em cada esquina, um juiz em cada sala e um carrasco em cada quarto. Meu pensamento não é único, mas é meu e dele não abro mão. Meus argumentos são meus e eu tenho o direito de ser obtuso e opositor, obsessivo, compulsivo e transtornado. Sou um tornado, sou assim. E como disse, meu pensamento não é de laboratório, nem de faculdades, nem de salões envidraçados. Sou transparente e cristalino e tenho o direito a ser aquilo que minha consciência mandar. Conheci putas crentes e crentes putas, todas com suas tolices e seus gozos perversos. Travei lutas contra crentes, ateus e nazistas. Transei com mendigas na calçada em troco de um café com leite e com putas nas escadas apenas para meu deleite. Projetei brinquedos, analisei fórmulas e criei sistemas. Apanhei de assaltantes, de putas e de tenentes. E gargalhei até mijar nas calças, escutando histórias de dementes. Comi rabos em puteiros, peguei gonorreia  mas não morri; escrevi à máquina e com caneta tinteiro e não morri, tomei conhaque com racumim em hotéis fedorentos e não morri; ajoelhei aos pés de crentes, rastejei aos pés de lésbicas, e lambi o chão de videntes, mas também não morri. Roguei aos céus, pedi clemência, implorei milagres e paguei promessas a santos e deuses. Ressuscitei sem morrer, emergi sem afundar, e amei sem amar. Amei a poesia e depois a matei. Matei sem matar, corri sem parar, parei sem olhar. Escorri, corri... E morri sem morrer. Corri sem corrente, sem correr. Nunca aceitei a corrente, nem a linha, nem segui o curso da torrente. Fui lixo, fui bicho, escroto, de esgotos, das ruas e das camas. Das damas. Quebrei cabaços, dei abraços e me cortei em estilhaços. Explodi bombas, pisei no vidro e cortei os pés. Fiz filhos, vasectomia e plantei árvores. Fiz parto de gatos, corri de medo de ratos e caguei nos sapatos. Ouvi milhões de musicas, escrevi milhares de poesias e fodi centenas de putas. Escrevi livros, cartas de amor e receitas de bolo. Criei galinhas, cadelas e mulheres. Mas sempre preferi ser um pequeno vulcão a uma gigantesca montanha inerte. Achei o que tinham perdido e perdi o que eu tinha ganho. E entre perdas e danos, danei-me em meio ao escuro da solidão bebendo rum e acordando no meio da madrugada segurando meu par de botas onde eu tinha mijado. Fodi com vivas em cemitérios e com mortas em camas. Por noites perdi o sono, por dias perdi o sol. Perdi o ônibus, perdi meu tempo e perdi a paciência. Da sanidade perdida, me sobrou a demência. A ausência... De tudo! Mas todo crime tem seu preço a ser pago e pago agora o preço daquilo que dei de graça. Ofereci a quem achei que devia, aquilo que eu tinha de mais precioso, que era a capacidade de pensar e contestar, até mesmo o meu próprio pensamento e até mesmo o seu próprio pensamento. E hoje sinto que isso era tão correto que aqueles a quem eu dei esse pensamento, sequer lembram de onde ele veio. Como filosofia e como experimento social, eu deveria ganhar o premio Nobel, mas como homem, dotado de ego, dotado de amor próprio e até mesmo de vaidade, sinto-me perdido, prisioneiro de mim mesmo, perseguido feito o Dr. Frankenstein por sua criação e abandonado a idéias que ninguém quer mesmo escutar, mesmo que eu brade, mesmo que eu gesticule. Por fim, troquei os laboratórios iluminados das faculdades pela vivência, pelas experiências práticas, feito uma cobaia que escapa do laboratório e vai ser presa nos dentes de um predador. Sempre falei muito, gesticulei, bradei. Queria ser escutado. Corri riscos, necessários e desnecessários, incorri em erros, necessários e desnecessários. Morei em tantas casas e lembro de todas elas. Poderia ter matado mas não matei, poderia ter roubado mas não roubei. Poderia ter morrido, mas não morri. E poderia ter amado, mas... Amei. Sim! Troquei a mim mesmo por uma, depois por dois e por fim por três. Transformei rochas em flores e o luar em meu amigo, corri perigo, construí um abrigo mas acordei coberto de lama, sozinho e no escuro. Pensei bem, pensei em mim e corri o risco, mais uma vez. Contei até um, até dois e até três e saltei no escuro sabendo da escuridão, mas sem medo do escuro; saltei do alto e tomei de assalto a vida, mas nunca roubei ninguém. Mãos ao alto, disse o ditador. Então rasguei poemas, criei problemas e acabei na sarjeta, bêbado, com o chinelo na mão e um par de dentes quebrados. Nunca vi o sorriso da sorte, mas da morte escutei a gargalhada. Joguei Deus na privada e dei a descarga, fui chamado de fraco e de ditador, de tolo e aproveitador, de traído e de traidor. Mas nunca chamei a ninguém do que fui, nunca fui sem ser chamado. De nada e por nada, nem por ninguém. Nunca cobrei o que me deviam e sempre devia menos que me cobravam. E sempre paguei com correção e juros. Correção: nunca jurei mentiras nem menti de verdade. E agora, sem sono e com fome, nesta madrugada faminta, escrevo perplexo uma resposta a uma pergunta que não foi feita. Ou aceita. E percebo que foi isso, apenas isso, que formou meu pensamento. E isso é o meu mais forte, e talvez o único, argumento que eu tenho a lhe dar. E “Fui”... Fui por ter ido.. Fui por ter sido. Bem-vindas, crianças, ao meu pesadelo.

27/10/2012

O Futuro Acabou! - Mas Quem o Matou?


O Futuro Acabou! - Mas Quem o Matou?
Luiz Carlos Barata Cichetto
Escritório de Trabalho de Milton Santos - São Paulo - Foto: André Stolarski - 2009 - Fonte: www.miltonsantos.com.br
Há alguns dias, escrevi uma matéria analisando uma frase do geógrafo brasileiro Milton Santos, a respeito de classes sociais. Naquele texto a análise foi pautada pela interpretação pura e simples da mesma e do seu significado e atualidade. Cheguei a conclusão de que, no contexto contemporâneo, ela está totalmente equivocada, não por falta de visão de Milton, mas porque aquela bipolaridade deixou de existir, em meu entendimento. Mas existe um outro flanco a ser analisado com relação não quanto a frase em si, mas sobre uma questão que muito me aflige e que diz respeito ao porque de a maioria das pessoas não conhecerem, e portanto não darem valor, a pensadores como ele, por exemplo, pautando suas vidas através de declarações de pessoas que, no mínimo, não tem um dedinho do pé de seu conhecimento, mas que são levados a sério, como se gênios fossem. Pessoas que nunca leram um livro, ou se leram foram apenas livros de autoajuda ou religiosos. Que nunca param para escutar coisas que podem de fato alimentar suas mentes com idéias conscientes e produtivas, que as faça pensar e consequente agir na direção de seu pensamento.

Milton Santos

E quem foi Milton Santos? Milton de Almeida Santos (1926–2001) foi um dos mais profícuos pensadores brasileiros, negro, nascido pobre numa pequena cidade do interior da Bahia, mas que através do talento e principalmente esforço intelectual, considerado um dos mais sérios filósofos do Século XX. Tornou-se Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia (1948) e posteriormente Doutor em Geografia pela Universidade de Strasbourg (1958). Foi perseguido pela Ditadura Militar, tendo morado na França e também no Canadá e Estados Unidos, Tanzânia e Venezuela onde sempre atuou como um respeitado professor.  Em 1994 recebeu o Prêmio Vautrin Lud, instituído pelo Festival Internacional de Geografia, em Saint-Dié-des-Vosges e é conferido por universidades de 50 países, premiando uma personalidade eminente no campo da geografia, sendo considerada a maior distinção neste campo científico, para o qual não existe o Prêmio Nobel. Milton Santos recebeu o título de Doutor Honoris Causa pelas seguintes universidades: Universidade de Toulouse, França, Federal da Bahia, Buenos Aires, Complutense de Madri, Sudoeste da Bahia, Federal de Sergipe, Federal do Rio Grande do Sul, Estadual do Ceará, Passo Fundo, de Barcelona, Federal de Santa Catarina, Estadual Paulista, Nacional de Cuyo, Estado do Rio de Janeiro e Universidade de Brasília. Foi também presidente ou membro de entidades nacionais e internacionais como a Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur) e consultor de organismos internacionais com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), Organização dos Estados Americanos(OEA), Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Secretaria da Educação Superior (SESu/MEC) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp/SP). 

Além disso, o menino negro e pobre, nascido de uma família humilde do interior baiano escreveu cerca de trinta livros e é reconhecido mundialmente. Sua obra "O Espaço Dividido", de 1979, é considerada um clássico mundial, onde ele desenvolve uma teoria sobre o desenvolvimento urbano nos países subdesenvolvidos. Seu pensamento sobre globalização, esboçado muito antes desse conceito se tornar corriqueiro, advertia para a possibilidade de que isso poderia gerar o fim da cultura e da produção original do conhecimento. "Por uma Outra Globalização", livro escrito em 2000, dois anos antes de sua morte, é referência hoje em cursos de graduação e pós-graduação em várias universidades brasileiras. Nesse trabalho fundamental, Milton faz uma abordagem crítica sobre o cruel processo da globalização atual. Em sua visão, esse processo, da forma como está configurado, padroniza a cultura e transforma o consumo em ideologia de vida, massificando os seres humanos, transformando-os em meros consumidores e espectadores de seu próprio destino, assim concentrando a riqueza nas mãos de poucos. Milton Santos não era contra a globalização, mas contra o modelo de globalização perversa vigente, que ele chamava de "globalitarismo". 


Silvio Tendler e Milton Santos

Conhecido como "o cineasta dos vencidos" por abordar em seus filmes personalidades como Jango, JK e Carlos Marighella, entre outros, Silvio Tendler produziu cerca de 40 filmes, entre eles dois longa-metragens sobre Milton Santos. "Milton Santos, Pensador do Brasil” (2001) e "Encontro com Milton Santos: O Mundo Global Visto do Lado de Cá", documentário que discute os problemas da globalização sob a perspectiva das periferias. O filme é uma entrevista com Milton Santos gravada quatro meses antes de sua morte. O outro, lançado em 2004, é o curta-metragem "Milton Santos – Por Uma Outra Globalização”.  Em 2005 Tendler recebeu o Prêmio Salvador Allende no Festival de Trieste, Itália, pelo conjunto da obra. Em 2008, foi homenageado no X Festival de Cinema Brasileiro em Paris, com uma retrospectiva de seus filmes.  É detentor das três maiores bilheterias de documentários na história do cinema brasileiro: "O Mundo Mágico dos Trapalhões" , "Jango"  e "Anos JK" , com cerca de um milhão de espectadores cada um.


Milton Santos, Inácio Bueno e Outros

E porque, pessoas como Milton Santos e outros intelectuais brasileiros não são divulgados, estudados de forma ampla e geral, não são convidados, com raríssimas exceções, a dar entrevistas em programas de televisão, rádio, jornais, etc.?  Porque a intelectualidade brasileira é colocada no ostracismo, vilipendiada e desacreditada em nossas terras, embora ovacionada em vários outros paises mais civilizados do mundo?  E existem outros, claro, e que nem a mesma reverência dos meios acadêmicos de Milton Santos tiveram, como Inácio Bueno, que se não fosse pela perseverança da família em lançar uma obra póstuma, "O Futuro Começou", teria seu pensamento totalmente ignorado quase pela totalidade das pessoas. E como tantos outros, que ignorados pela mídia comprometida com o poder, nunca chegaram aos olhos e ouvidos da maior parte da população, estando restrito apenas aos meios acadêmicos.

Inácio de Loyola Gomes Bueno foi membro da Companhia de Jesus, Padre Diocesano afastado da Igreja na época do Regime Militar Brasileiro por pressão militar, exilando-se na França onde permaneceu durante oito anos e onde cursou Sociologia e depois o Curso de Psicanálise existencialista em Paris. Por intermédio de uma bolsa, foi também  a Tanzânia e posteriormente ao retornar ao Brasil passou por inúmeras dificuldades, tentando retornar ao ministério sacerdotal e passando a exercer a psicanálise, sempre atendendo generosamente a todos que o procuram. Em 2000 sofreu um AVC, seguido por várias doenças e em 2001 escreveu este "O Futuro Começou". Faleceu em 29 de Junho de 2007.


E Nós? E os Outros? 

E porque isso acontece? De quem é a culpa, afinal de contas? É claro que não podemos subestimar os poderosos, achando que incentivariam ou mesmo permitiriam que o pensamento de pessoas como Milton Santos e Inácio Bueno fosse levados às chamadas "classes inferiores", pois fatalmente isso resultaria numa revolução. Óbvio que o poder emana de cima, ao contrário do que prega a Constituição hipócrita, nunca do povo, mas o trabalho sujo, de disseminação, cabe a outros componentes dessa engrenagem, como a dos meios de comunicação, que nada mais são do que as vozes dos poderosos, braços que conduzem as ovelhas pelo mata-burro até seu destino final. Os outros braços, os das religiões, se encarregam de dar o aspecto "divino", demonizando e desacreditando a intelectualidade e transformando as pessoas em autômatos ocos, presas fáceis do grande mecanismo de dominação.

Exemplos de vida, antes de mais nada, como os de Inácio Bueno e Milton Santos, exemplos de determinação, de como não se deixar levar por estigmas e rótulos, pelas dificuldades, não interessam aos poderosos. Saber que, através de esforço, dedicação e firmeza de caráter podemos romper a maior parte das barreiras sociais, independente da cor da nossa pele ou da nossa condição social de origem, não interessa. Interessa mesmo é criar cotas racistas e preconceituosas, segregação pura, leis de privilégios que criam ilusão de igualdade, mas que são puros disfarces de incompetência e etc., são na verdade cabrestos aplicados com o único intuito de manter as coisas exatamente como e onde elas são e estão. Aqueles que ousam destoar, são execrados, alijados de seus bens, emudecidos com as armas mais sujas ou estigmatizados como loucos. 


Conclusão

Pouco resta do poder de pensar para a maioria, pouco resta do poder de se comover com a miséria e com a fome. Pouco resta do poder de indignação perante a violência. Pouco resta de fato de humanidade aos seres humanos. A banalização do sexo e do amor em musicas de qualidade sofrível e a publicidade que induz às pessoas ao consumo demente, são mecanismos práticos de dominação e conduzem a um caminho perigoso, o da aniquilação da humanidade. O que nos espera é um futuro sombrio, tenebroso, de fome e destruição, onde a violência e a morte serão, como aliás já são, fatos corriqueiros, cotidianos. Um futuro onde a arte e o sonho não terão mais lugar. O que nos espera é um futuro em que como zumbis nos devoraremos uns aos outros, até que não sobre mais um ser. Ao menos nenhum ser que foi um dia chamado de Humano.


Mais Informações:
Milton Santos: http://miltonsantos.com.br
Inácio Bueno: http://www.abarata.com.br/resenhas_livros_detalhe.asp?codigo=1143
Silvio Tendler: http://pt.wikipedia.org/wiki/Silvio_Tendler


26/10/2012

Cavalos Não Fazem Revoluções


Cavalos Não Fazem Revoluções
Luiz Carlos Barata Cichetto
"Existem apenas duas classes sociais, a dos que não comem e a dos que não dormem com medo da revolução dos que não comem." - Milton Santos. 

A frase acima, que brotou na minha cabeça com o primeiro lampejo da manhã, provocou uma torrente de lava. Uma quente torrente de pensamentos, alguns confusos pela profundidade da mesma, outros claros pelo mesmo motivo. 

Infelizmente não descobri as circunstâncias e quando frase foi dita ou escrita, o que seria de fundamental importância para sua total compreensão. Mas, separemo-la do tempo, isolando-a no contexto e época atuais, pois se a analisarmos dentro do contexto anos 60 ou 70, ela teria diretamente uma relação com a época da Ditadura Militar, e daquela crença dos "guerrilheiros" de que as massas um dia se levantariam contra a tirania militar, o que aliás nunca aconteceu. Mas analisando pelo ponto de vista atemporal, deslocada em qualquer tempo, e trazendo-a para os dias correntes e a luz dos acontecimentos que nos cercam neste principio de segunda década do terceiro milênio, seu significado muda completamente. Entretanto, os contextos históricos não podem e não devem ser desprezados quando se trata de uma declaração de alguém que foi atemporal e proprietário de uma cultura com poucos similares nestas terras. 

Frases como esta são reprisadas e exibidas em redes sociais com alarde por aqueles que se consideram revolucionários, sem, no entanto pararem e pensarem em seu significado real, sobre o que ela representa na prática ou na história. E se hoje, vivemos um caos, principalmente nas grandes cidades, com organizações criminosas disputando o poder a tapas e a balas podemos dizer que a frase de Milton está correta? Sim e não!

Se pensarmos na população concentrada nas periferias das grandes cidades, abandonada em barracos sem infraestrutura, ganhando salários miseráveis quando muito, vivendo em péssimas condições de sobrevivência como os "que não comem", sim, a frase estaria correta. Desamparadas pelo Estado, usadas como massa de manobra por políticos e humilhados de todas as formas, estas pessoas se bandearam para o lado que lhes era mais próximo e que lhes dava abrigo e segurança: o lado do chamado crime organizado, e se são estas pessoas, que ameaçam "o que não dormem", que seria na concepção do conceito imposto na frase do geógrafo brasileiro, os "poderosos".

Mas a resposta seria não se pensarmos que isso não se trata de nenhum tipo de revolução, mas sim de uma guerra pela sobrevivência, nunca uma revolução. Uma revolução é pautada por ideais e objetivos claros e comuns, é embasada e sustentada por uma causa comum, clara e definida. Seria o descaso do Estado com essas pessoas a causa determinante? Isoladamente sim, mas no geral não se trata de uma "causa", mas de uma desculpa. Em outras palavras, a revolução é comunitária, mas a guerra é individual. E o que temos são apenas guerras individuais travadas por vezes em grupos, sem objetivos claros, sem ideais e que causam apenas uma autêntica barbárie social, visto que entre essas duas classes a que se referem Milton Santos existe uma terceira, que no fim é quem paga a conta, ou seja, a que realmente não dorme, com medo das outras duas.

Essa bipolaridade de Milton, a parte toda sua vivência e cultura, me parece um tanto simplista se entendida literalmente, sem o contexto exato em que foi proferida. Mas como foi ela a base desta análise, continuo a analisá-la isoladamente, posicionando-a no atual cenário brasileiro.

Então pensemos: quem são "os que não dormem"? Num entendimento imediato e simples, seriam os milionários e os políticos, os poderosos que comandam o mundo. E será que eles realmente não dormem com medo dos "que não comem"?  Não creio, pois têm de muito a certeza de que todo o aparato de segurança os protegem. E quando falo em aparato, não me refiro apenas ao mais aparente, como forças militares e policiais, mas também aos aparatos muito mais eficazes e eficientes da propaganda, das mídias, que os protegem com uma invisível barreira. As ilusões são transformadas em realidade, empacotadas em belos embrulhos e entregues "aos que não comem" sob a forma de leis protecionistas, segregacionistas, e privilégios. Puras ilusões.

E a ilustração disso seria aquela de se pendurar uma cenoura na frente de um cavalo deixando que ele a persiga o dia inteiro sem nunca alcançar. A busca dessa "cenoura" é o maior fator de proteção. E assim "os que não comem" têm a ilusão de que um dia comerão e passam a defender aqueles que, diariamente colocam aquela cenoura na sua frente. A guerra é declarada não contra aqueles, mas contra outros cavalos para que mais dessa cenoura imaginária lhes pertença. E isto é uma guerra, nunca uma revolução.

Mas o terceiro ponto desse triangulo, que a frase de Milton Santos despreza, não é nem o dos cavalos que não comeriam, nem a dos fazendeiros fornecedores de cenouras imaginárias que não dormiriam, mas o daqueles que projetam e constroem celeiros,  aram a terra e plantam e colhem a cenoura. Enfim, daqueles que realmente produzem com o suor de seus rostos ou matraquear de seus neurônios tudo o que os outros dois disputam. E estes são os que de fato não dormem. E não dormem porque são obrigados a fornecer mais e mais cenouras aos primeiros para que criem suas ilusões, e não dormem por medo de terem suas plantações devastadas pelos iludidos cavalos ensandecidos, e principalmente não dormem por medo de serem massacrados por mostrarem aos cavalos que jamais alcançarão aquela cenoura. São estes, portanto, inimigos tanto de uns quanto dos outros.

Temos portanto não duas, mas três figuras metafóricas na história: o fazendeiro, o cavalo e o agricultor. E não tenho duvidas de que o agricultor é de fato aquele que não dorme. Ou como no velho dito popular, dorme de olhos abertos, com um olho no fazendeiro e o outro no cavalo. E acredito que não preciso lembrar ao distinto leitor de que nem fazendeiros nem cavalos fazem revoluções.

Para Saber Mais Sobre Milton Santos: http://miltonsantos.com.br/site/

24/10/2012

Ainda Existem Homens Fortes?


Ainda Existem Homens Fortes?
Luiz Carlos Barata Cichetto

Dia desses, comentava com meu pai de 80 anos e getulista assumido, sobre o fato de eu estar relendo "Olga" de Fernando Morais, e sobre o que fora de fato a chamada "Intentona Comunista". No fim do meu resumo, ele saiu com a seguinte observação: "É, naquela época ainda existiam homens de verdade!" E então me pus a pensar sobre o que ele dissera e que parecia em principio ser de uma simplicidade extrema com um toque de machismo, mas cheguei a conclusão que ele tinha absoluta razão. Afinal, um homem como Luiz Carlos Prestes, militar de carreira, atravessar quase o país inteiro comandando um bando de esfarrapados e armados quase que apenas com o ideal de libertar um povo das garras de uma ditadura sangrenta e humilhante, não é o que teríamos hoje. Ser torturado e ver sua esposa ser deportada para dentro da Alemanha Nazista, sabê-la morta em câmaras de gás e mesmo assim, ainda continuar acreditando e lutando pela libertação de um povo que nada fez para ao menos caminhar ao seu lado, não é exatamente o tipo de atitude que veríamos nestes dias. 

Até o final do Século XX, mais precisamente até os anos 1980, ainda existiam tais homens, que, por um ideal se submetiam calados à tortura; que se submetiam a miséria e a fome em nome de um povo; que se submetiam ao exílio e a falta de condições de vida por lutar por um povo que sequer tinha consciência de sua existência e que vibrava a cada gol numa Copa do Mundo. Pessoas como Olga Benario, Carlos Lamarca e Carlos Marighella e outros trocaram suas vidas por um ideal, deram suas vidas pelas vidas alheias, por um sonho de liberdade não pessoal, mas de um povo inteiro.

E eu então pergunto: existem hoje pessoas com tal espírito? Com tal desprendimento, com tamanho "amor" de fato à raça humana de uma forma geral?  E eu mesmo respondo, sem nenhuma chance de estar infelizmente errado: não existem! E essa conclusão é a coisa que mais me causou perturbação. A frase de meu pai faz absoluto sentido, mas por quê? Seriam hoje os homens feitos de uma matéria diferente daqueles que a 30, 50 ou 80 anos existiam? Claro que não! Onde, então foram parar esses "homens de verdade"? 

Provavelmente precisaríamos de uma completa análise histórica a partir dos últimos 80 ou 100 anos, que englobasse todos os fatores inerentes para compreendermos tal "desaparecimento". Ou talvez a coisa seja um tanto mais simples. Nasci ainda no final dos anos 1950 e passei minha infância, adolescência e parte da vida adulta debaixo de uma Ditadura Militar no Brasil. Conheço, portanto, o comportamento e o pensamento de meus contemporâneos. E tive filhos e os vi crescer justamente a partir do final desse processo e, aparte a educação que lhes dei, percebo o quanto essa geração e as posteriores passaram a enxergar o mundo, de uma forma mesquinha, vaidosa e ignorante.

O final dos anos 1980 viu a derrocada do sistema Socialista no mundo, através do fim da União Soviética e da derrubada do muro de Berlin. E, mais do que simbolizar o fim de um sistema de governo, isso deixou órfão todos os idealistas, quebrando suas referências. A espécie humana precisa das dualidades, das referências, dos opostos. Precisa de opções que representem um caminho: Bem ou Mal, direita ou esquerda e assim por diante. E o Socialismo representava a outra ponta da corda, a opção, o caminho para aqueles que acreditavam que se do lado do Capitalismo as coisas eram ruins existia a outra ponta, o Socialismo, como a referência. Existia a busca por um outro ideal, uma tentativa, um sonho, que com o fim do Socialismo morreram, deixando órfãos todos os idealistas. Pois a parte a crença no socialismo em si como sistema correto ou não, justo ou não, era simplesmente o fato de existir a opção que mantinha os ideais vivos. E os ideais é que fazem com que pessoas vivam ou morram por eles. Sejam quais forem.

E aí é que realmente está a cerne da conclusão perturbadora a que meu pai, sem qualquer estudo filosófico ou histórico chegou, mesmo sem ter consciência: falta aos homens de hoje um ideal. Um ideal que não se encerre em si próprio, em suas necessidades vitais de vaidade e dinheiro. Claro que muitos seres humanos vivem bem sem um ideal fora de sua própria existência, claro que muitos vivem apenas pelo “ideal” que seja apenas comprar um carro novo ou ter dinheiro para beber, mas creio que a essência humana seja coletiva por natureza própria ou pela da moral religiosa arraigada há milênios, mas é baseada sempre num por que, num motivo. E porquês e motivos são as bases do ideal. 

O ideal gera comportamentos e atos. Não há como isolar. Isolados são efêmeros e desprovidos de verdade, desprovidos de ação. Comportamentos sem idéias são vazios. Podem ser reativos, mas não causam efeitos e se o fizerem são de curta duração ou de fraca expressão. Agora, comportamentos baseados em idéias e ideais são duradouros e fortes, representando o crescimento da humanidade como espécie.

Enfim, a conclusão que chego a respeito da afirmação de meu pai é que não existem mais "homens" de verdade por não existirem mais ideais. Os ideais fazem os homens fortes, os faz viver e morrer. Sem eles, somos apenas uma massa uniforme de seres amontoados preocupados apenas com comportamentos despidos de tudo, ocos e mecânicos.

23/10/2012

Caminho Suave


Caminho Suave
Luiz Carlos Barata Cichetto

A angustia que não larga, a boca amarga e o cigarro que a gente traga. Trago comigo ainda um sonho, mas feito aqueles de padaria, azedou o creme. O creme não compensa e o que compensa é o que? Não sei, mas em compensação brinco com as palavras porque gosto de brincar. A brincadeira é minha e não deixo ninguém mais brincar. Quer brincar? Então pegue outras palavras e vá brincar em outro lugar. Brinque com as suas próprias palavras e não com as minhas. As minhas me pertencem, minha mãe me deu. Eu era criança, era pequeno e era doente. E minha mãe passava roupa e na outra ponta da mesa eu aprendia a escrever. E eu achava que as letras eram meus brinquedos. E eram mesmo.


Os melhores brinquedos que eu já ganhei. "Caminho Suave" Nunca foi suave esse caminho de brincar com as letras, depois com as palavras, mas foi o caminho que eu escolhi. Nem foi tanto escolha, mas um processo natural. Minha mãe passava roupa das vizinhas e ganhava um trocado. E eu, que aprendia a ler e escrever naquela cartilha, nenhum. Minha mãe sorria e eu aprendia. Não tinha noção do caminho, queria apenas brincar, gostava daquela brincadeira. O som das letras, primeiro separadas e depois juntas, era belo. Minha mãe cantava e eu soletrava. Uma bela cena doméstica, coisa de filme francês na periferia de São Paulo. Sabia que um dia eu iria conseguir ler aqueles livros que estavam no bojo do sofá-cama. E um dia consegui. E depois, de "A Tartaruga e o Gato", passando por "Lone Ranger", que foi chamado de "Zorro Americano", presentes das minhas primeiras professoras, cheguei a Joyce e Calvino. E também passei pelas palavras perigosas de Marx, pelas indecorosas dos Arthur, Miller e Rimbaud; pelas incestuosas de Augusto e Genet; pelas vertiginosas dos Charles, Baudelaire e Bukowski e sem contar, é claro, com as maravilhosas de Edgar e Friederich.

O caminho nem sempre era suave, mas era o caminho que eu queria. E nem sabia ainda o que era angústia, cigarro e dor de cabeça. Não tinha amigos, apenas livros; não tinha heróis, apenas livros; não tinha problemas, nem namorada, nem dinheiro, apenas livros. E sonhos que não azedavam. 

Ainda hoje gosto de brincar com as palavras, adoro quando as espremo e aperto e elas gemem, gritam, choram e riem. São belas e são vivas. Quase que diariamente, sento-me a mesa, apanho uma porção delas e começo a colocá-las umas ao lado das outras até chegar ao final de uma linha, depois embaixo delas outras e outras e no final tenho um brinquedo pronto, vivo e eterno que por vezes dou nome de poesia. Brinco e brinco com esse meu novo brinquedo de armar até a noite, quando ele passa a ter vida própria. Então eu o liberto para que outras crianças crescidas como eu e talvez também angustiadas com seus sonhos que azedaram, possam brincar com o mais magnífico brinquedo que um ser humano pode ganhar.

E sempre agradeço a minha mãe, não por ter me mostrado o caminho da vida através de seus rígidos conceitos éticos e morais, pelos tapas rústicos e pelos beijos carinhosos, mas a agradeço pelo maior e melhor brinquedo que já ganhei na minha vida, um brinquedo que nunca irá se partir, nunca irá quebrar: "Caminho Suave".