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04/09/2019

A Mulher Que Me Ensinou o Que é Poesia (E Outros Amores)

A Mulher Que Me Ensinou o Que é Poesia (E Outros Amores)
Luiz Carlos Cichetto




Há exatos 36 anos, no dia 28 de Dezembro de 1982, eu perdia uma das pessoas mais importantes e queridas, e em que todos os dias desses anos eu recordo.
No dia de Natal foi a ultima vez que a vi, ela estava triste, ao contrário do que sempre era. O médico tinha mandado parar de fumar, pois seu pulmão estava fraco demais. E ela disse que não conseguia, pois afinal fumava há mais de sessenta anos, e ademais, dizia que não via mais motivos para continuar, pois já tinha perdido o marido e um filho.
Entretanto, o que me marcou foi as ultimas coisas que escutei dela, em meio a uma brincadeira: que ela jamais conheceria um bisneto de minha parte. Ela sempre dizia isso, mas naquele momento soou diferente, afinal eu tinha me casado no início daquele ano, então, a qualquer momento eu poderei ser pai. Ah, sim, não era tão comum naqueles longínquos anos 1980 as pessoas serem pais e mães sem terem família formada. Ela morreria depois de três dias, e cerca de uma semana depois minha então esposa ficaria grávida de meu primeiro filho.
Nascida nos primeiros anos do século XX, na cidade de Jacobicabal, interior de São Paulo, Izaura Piccinini, era irmã gêmea de Izabel, de uma família numerosa. Anos mais tarde conheceu um mineiro, também filho de italianos, loiro e de olhos claros e se casaram. Foram seis filhos alimentados durante muitos anos com o trabalho na roça, como colonos de fazenda, na região de São José do Rio Preto, Catanduva. No final dos anos 1940, inicio dos 50, não estou bem certo, se mudaram para a Capital com o intuito de dar estudos e melhores condições aos filhos. Sempre moraram na região da Penha e Tatuapé.
Analfabeta, Izaura tinha uma sagacidade e uma inteligência enormes, mas que eram sufocadas pelo marido. Francisco foi um homem brilhante, inteligente, que se semi-alfabetizou quase de forma autodidata, somente aos quarenta e poucos anos, e em São Paulo passou a ganhar a vida fazendo vasos de plantas, cuja arte e engenharia presentes, espantariam qualquer artista ou engenheiro. Entretanto, o "Véio Chico" era um homem, até por força de uma existência sofrida, era um homem muito grosseiro com todos, incluindo aí netos, e tinha preconceito com os próprios netos. Embora todos os filhos fossem casados com também descendentes de europeus, ele tinha nítida predileção pelos que, como ele, ostentavam olhos claros. Eram dez os netos e quatro ou cinco tinham essa característica e gozavam de carinhos, agrados e até dinheiro por parte dele, o restante, incluso eu, eram ignorados, desprezados e até mesmo ofendidos. A única exceção era o mais velho, que mesmo não tendo olhos brilhosos, era tratado com a mesma deferência que os queridos, pelo fato de ser o primogênito.
As mulheres dessa época eram educadas para servir a seus maridos, e concordar com todas as suas decisões, sejam elas do caráter que fossem, então, enquanto ele viveu, ela simplesmente calava suas emoções com relação aos netos. Particularmente eu percebia uma afinidade maior dela comigo, mas que nunca era expressa por conta das predileções do marido. Mesmo assim, foi ela quem me incentivou a gostar de plantas, me ensinou os primeiros rudimentos para plantar e cuidar de flores, que eram sua maior paixão. 
Quando Francisco morreu, entretanto, ela sofreu uma transformação, ou melhor, passou a ser o que realmente era. E foi ai que nos conhecemos realmente, e surgiu entre nós uma enorme, uma maravilhosa, amizade e cumplicidade. Nos primeiros anos ela foi morar com uma filha, mas logo sentiu necessidade de ter seu próprio espaço. Assim, foi construída uma pequena casa de dois cômodos nos fundos do terreno do imóvel que fora construído por eles, mas que estava alugado. Era de bom senso ter alguém dormindo ali, lhe fazendo companhia a noite, até para eventuais emergências. O designado foi meu irmão borra-botas que ficou com medo de ela passar mal, então acabei sendo escolhido. E ai foram, sem a menor duvida, os melhor anos da minha existência. Se minha memória não falha, quase quatro, entre 1978 e 1982.
No pequeno quarto tínhamos nossas camas lado a lado e eu, ao chegar da rua ia para lá. Assistíamos juntos às gloriosas novelas das dez, particularmente "O Bem Amado", que ela adorava, e depois ficávamos sentados, cada um em sua cama, fumando e contando histórias. Eu adorava as histórias, ou causos, do interior, dos ladrões de cavalos, das lides na roça, das assombrações nos pastos, coisas assim. E, pasmem, em troca ela queria que eu lhe contasse, e com detalhes, minhas aventuras amorosas. Ela ria muito, e se eu, envergonhado omitia algum detalhe, ele ficava brava, me obrigando a detalhar. Ríamos muito. Ela era dona de um senso de humor impar, de uma compreensão das coisas do mundo como poucas pessoas, e jamais fez qualquer censura a nada, a ponto de, quando eu comecei a namorar, dormíamos espremidos na minha cama, com dona Izaura ao lado. Ela nunca fez qualquer censura ou comentário, como seria normal a alguém de sua geração.
Duas pequenas histórias dão exemplo disso. A primeira: naquela época não existiam baladas de amanhecer, as coisas, shows, bailes, tudo mais, acabavam no máximo as dez ou onze da noite, até porque não tinha transporte coletivo, então, era raro alguém passar a noite fora. Uma época eu tinha conhecido uma garota, que tinha uma profissão incomum: era puta, e trabalhava num puteiro do centro da cidade. E comecei a sair com ela depois do expediente. Numa sexta feira, decidi que iríamos a um hotel na região e lá ficamos até o meio dia do sábado. Não existia celulares, claro, e mesmo telefones fixos eram muito raros, portanto não tinha como avisar. Quando cheguei em casa, por volta de duas da tarde o alvoroço estava formado: minha mãe chorava, meu pai tinha ido à delegacia e estava naquele momento fora. Foi então quando expliquei que estava com uma namorada, que dona Izaura soltou ingenuamente: "É, Carlo, todo mundo aqui preocupado, e "ocê" lá gozando!" Todo mundo caiu na gargalhada e ela ficou com cara de pastel, já que não sabia o motivo das risadas, mas aquilo foi o que bastou para aliviar as tensões e me livrar de uma bela surra, que fatalmente meu amoroso pai me aplicaria, mesmo eu já com dezoito anos.
A outra situação inusitada aconteceu alguns anos depois, quando eu já namorava com minha primeira esposa. Ela, a vó, sempre dizia que o "véio", tinha sido o primeiro e único homem da vida dela, o que era comum naqueles tempos tão distantes. Ela havia me contado, por exemplo, que apesar de um brucutu, de um ogro com todos, nos momentos íntimos ele era extremamente carinhoso com ela, mas... Ela nunca tinha visto o pau de nenhum outro homem. Aliás, segundo ela, nem dele direito, pois sempre "faziam as coisas" no escuro. Foi ai que ela me fez o pedido: ela queria ver o pinto de outro homem, uma fotografia, claro. Caracoles, em 1981 não havia Internet e mesmo as revistas eróticas ainda eram bem brandas. Minha saída foi procurar uma banca de jornal e pedir... Uma revista "gay"... Agora, imaginem a cena: cheguei numa banca, pedi ao jornaleiro uma revista que tivesse fotos de homens com paus a mostra. E ainda tentando dar alguma justificativa, claro, com receio que o cara pensasse (Ingênuo) que eu fosse gay. O que eu podia falar: que minha avó nunca tinha visto um pau de outro homem? Claro que ia ficar pior. Bem, comprei a tal revista, coloquei dentro de uma fotonovela e levei para casa, mas não tive coragem de me sentar e mostrar. Pedi então a minha então namorada que mostrasse. E quase me mijei de rir na cozinha, escutando as risadas, os comentários e onomatopeias dela.
E há tantas outras, histórias de inteligência, de sapiência, de humor simples e ingênuo, como quando eu, já casado, recebi sua visita e fui preparar um suco de manga com leite e ela quase teve um infarto; mas a mais emocionante, e que eu jamais esquecerei, e que de alguma forma foi um dos meus maiores incentivos a nunca parar de escrever foi numa madrugada em que eu matraqueava minha máquina de escrever na mesa da cozinha e, de repente percebi sua presença, de camisola atrás de mim. Ela perguntou o que era que eu escrevia tanto, e eu lhe disse que era poesia. Ela não sabia o que era "poesia", e eu não sabia explicar, mas ela reagiu me dirigindo um olhar, como se entendesse o que era aquilo. E então me disse que gostaria de saber ler para entender o que era aquilo. Perguntei se queria que eu lesse, e ela me disse: "Não, não precisa, eu já entendi o que é. Isso é "ocê", Carlo!" 
Assim era dona Izaura Piccinini Lazarini, que morreu três dias depois do Natal, sem largar seu "pito", com suas mãos marrons de nicotina por esconder o cigarro, de edema pulmonar, e em quem todos os dias eu penso e lembro alguma passagem. De fato, posso dizer, a mulher mais poderosa e amorosa que conheci. E por horas lamento saber que há nada além da morte, e que portanto, nunca mais nos contaremos histórias, nunca mais nos sentaremos nas beiradas das camas até amanhecer o dia, rindo. 
Mas enquanto minhas carnes trafegarem por este mundo, ainda, graças a ela, saberei o que é poesia.

28/12/2018

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